O segredo dos teus olhos

      

  Os papéis a dormir no chão e eu a sentir que lá estiveram uma eternidade. Marcam apontamentos de outrora e eu sei que lhes pertenço. Estão todos empilhados aleatoriamente. Papeis que são uma geração contínua de acontecimentos. Desde a porta do meu lugar até à saída do espaço de outros.
        Mas é o meu quarto. Tudo indica que é mesmo o meu lugar.
        Nas paredes escorrega um som que houvera existido desde sempre. A ária de cadência harmoniosa relembra-me romances acontecidos. E eu recordo. Recordo as pegadas que simbolizaram o meu crescimento. É nítido porque são as mesmas. As pegadas. As marcas simbólicas da minha juventude.
        E eu que cresci.
        Eu que me faço velho com o medo de envergonhar a criança que fui.
        Eu que me torno velho e sonho com os dias que foram o inicio de mim.
        Queria ter um caderno de infância. Algo que me fizesse recordar a inocência e quem sabe saboreá-la. Um registo de tudo o que pensava de mim. Algo que me salvasse do futuro.
       
        Mas se o que aí vem for aquilo que sonhei? Não pode ser. O que nos vai acontecendo nunca é igual ao que sonhámos.

        Eu sonhei com uma mão a abraçar o trigo e o teu corpo.
        Mas isso nunca aconteceu. Nunca foi nos teus olhos que vi reflectidos os campos de trigo.
        No entanto, vejo uma foice e um martelo. E vejo o vermelho. Escritores russos. Revoluções. Vejo revoluções nos teus olhos. São nítidos os teus horizontes longínquos, repletos de ideais. São bonitos os teus ideais. Tu és bonita.
       
        Mas outra vez a minha velhice misturada com a adolescência constante. Uma perdição de conteúdos amorosos. A minha perdição amorosa por ti. Eu quero-te. Tu és bonita e tudo se mistura na essência que quero ver em ti.

        As minhas paredes. A ária de cadência harmoniosa. Tu. As minhas pegadas que sonharam o caminho até ti e nunca chegou. O encontro que nunca se deu porque sempre estiveste longe e eu perto demais.
        Quero pertencer-te.
        Ainda vamos a tempo de abraçar o trigo e quem sabe, talvez eu encontre os campos de trigo no segredo dos teus olhos.

Comentários

  1. Em segredo... onde me encontro, tropeçando nesta escrita que me deixa caminhar livremente por ela. :)

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