Os anos entre nós
“sempre os anos entre nós,
sempre os anos,
sempre o amor.”
Virginia Woolf
Hora de jantar. O momento exato em
que estamos sentados em cadeiras que perdem o jeito e a forma de quem as
concebeu. Há um silencio absurdo nas vozes que não combinam, nas intenções de
tudo o que se encontra perdido na mesa. Faltam os guardanapos que poderiam
criar impulsos de escrita, guardanapos que num outro tempo geravam poemas que
se distraiam nas interpretações, poemas que deixámos de escrever e nos
esquecemos de guardar. No centro da mesa, a mesma flor dentro do jarro abstrato
com curvas surrealistas.
A
flor deixou de respirar pelos poemas.
Somos
gente firme que não sabe falar. Poderíamos ter olhos de vidro que veríamos o
mesmo nada de agora. Há uma distancia curta que nem chega a ser, é longa demais
para que um de nós tenha um resto de aproximação.
Atrás
de mim, na porta do frigorifico, uma casa alentejana, sensível, a segurar um
papel que esconde as palavras que escolhemos, para quando nada houvesse senão o
silencio que agora nos une. Ambos sabemos que no momento em que tenhamos de
retirar o papel, seguro pela casa alentejana, sensível, nesse momento deixará
de haver um passado, um longo caminho, a lembrança do que fomos. Quando o papel
estiver na mão de um, o outro fingirá uma doença e morre.
O
esquecimento é morrer com uma doença desconhecida.
Na
bancada da cozinha jaz uma vela que nunca se acendeu: cera que não entende a
salvação, que por vezes tudo se pode iluminar.
Retiramos
a loiça da mesa. Na única vez que nos conseguimos repetir. Pensamos que somos
absurdos porque antigamente fazíamos sexo desmedido em qualquer espaço de
tempo. Agora, apenas nos repetimos em silencio.
Vamos
para cantos opostos do apartamento, onde somos recebidos por outras duas
pessoas maiores que nós. São essas pessoas que quebram a falta de palavras.
Apaixonamo-nos novamente e acreditamos que em cantos opostos, em pessoas,
seremos novamente um caule em que florescem pétalas-amor. E novamente, a
repetirmos as palavras que tantas vezes guardámos um para o outro.
Voltamos
para a cama, onde nos vamos encontrar novamente, por segundos, até os olhos se
fecharem. Nunca nos voltamos a encontrar.
Vejo
que adormeces depressa. Nem o teu adormecer é igual. Já não te atrapalhas numa
queda antes do sono profundo. Enquanto dormes, já não falas com a noite. Em
diálogos que sempre gostei de te apreciar. Tu já não falas com a noite. Por
vezes, nessas conversas vadias com uma noite que nos conhecia bem, dizias
coisas bonitas sobre o nosso tempo, no auge do nosso começo.
Hoje
enquanto te observo a dormir, já não espero absolutamente nada. Tu já não falas
com a noite.
Abandono
a cama em direção à cozinha. Não me importa o barulho que faço com os ossos a
estalar. Tu deixaste de me ouvir faz tempo.
Ao
entrar na cozinha, olho para a casa alentejana, sensível, que segura o papel.
De olhos interrompidos, hesito um pouco porque entre nós e o tempo houve um
principio de amor, houve uma história bonita que terminará na leitura das
palavras que o papel esconde, que nós escondemos.
O
meu olhar encontra no fundo do corredor a sombra que o teu corpo faz na beira
da cama. Até a tua sombra me despreza, me repele. A tua sombra desconfia das
minhas saudades. A tua sombra não ouve a minha falta de ti.
Continuas
jovem, como quando o teu corpo acalmava os meus tremores de escritor perdido. O
meu olhar tem a tua sombra e um imenso amor que abandonámos ainda existe, tudo
imagina que existe.
Sem
albergar qualquer imaginação, retiro o papel, agora órfão da casa alentejana,
sensível. Retiro o papel e leio:
“Nunca
haverá tempo para o que não soubemos esperar.”
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