Deixei-te esta manhã



como é que demoraste a perceber que nunca me deitei contigo. as pernas abriam-se a fazerem letras no ar, os meus braços corrigiam as falhas do teu corpo sobre o meu, a minha barriga encolhida para me imaginares mais magra. o quarto nunca chegou para os sons tremidos de teatro. quando deitados, tu por cima, eu por baixo, sem mudarmos o calendário, nem a pornografia barata dos filmes italianos nos servia de inspiração sexual. era assim porque eu nunca me deitava contigo.

detestavas as alturas em que me vestia devagar. dizias aborrecido

- não precisas disso. tenho ciúmes do espelho.

e não tínhamos espelhos em casa porque numa manhã mal acordada atiraste pela varanda, em raiva. não deixaste nem aquele redondo que usava para os lábios. era a única forma de perceber como se beija. aquele espelho redondo ensinou-me a beijar e tu, parvo, nem te deixavas aprender.

quando chegava a hora da novela, desligavas a televisão e depois de entornares o leite no pijama de flanela

(sempre gostaste de pijamas de velho)

deslizavas pelo chão flutuante e eu a saber que ia fingir mais uma vez. a fingir os gritos de um prazer que nunca acreditei que pudesse sentir. a fingir a pele em gritos, a fingir a secura que ia dentro de mim, a fingir que o amor era tu dentro de mim quase a violar o corpo porque ele fechado sem te querer.
não suportava o teu corpo. e com a cabeça no fundo da almofada a imaginar a coragem contra os teus olhos

- vestido és feio mas despido és horrível.
e o teu sorriso que me cansava mais do que as meias usadas espalhadas pelo sofá, mais do que o rolo do papel higiénico terminado no mesmo sitio, mais do que a loiça por lavar, mais do que o tampo da sanita levantado, mais do que as bolachas na cama.

tu a teimares que o teu sorriso era o mais bonito do bairro.

(e era. ainda é)

e porque é que não bebias vinho comigo. com o teu ar declaradamente fora do sensual, acreditavas profundamente que beber vinho era demasiado charmoso. e nem uma garrafa me soubeste oferecer no dia em que me pediste o resto dos dias contigo.

(e eu quase a aceitar. se ao menos o vinho)

mas a imagem de estares dentro de mim a ser quase um esquecimento que nunca se perdeu. a força e a contra força. tu a quereres sempre ir mais adentro. como se o amor se finalizasse no teu espernear. como se o amor pudesse ser sexo e uma flor.

por isso deixei-te esta manhã. a minha roupa ficou no armário porque quero que te lembres de me cheirar, porque não iria suportar ver a blusa de outra de encontro as tuas camisas, porque não seria possível eu aceitar que as tuas gravatas pudessem abraçar os lenços de outra que não eu.

por isso deixei-te esta manhã. depois de apanhar as meias espalhadas pelo sofá. depois de mudar o rolo de papel higiénico. depois de lavar a loiça toda. depois de baixar o tampo da sanita. depois de deixar um pacote de bolachas na mesa de cabeceira.
por isso deixei-te esta manhã na promessa que voltarei logo ao final da tarde, com umas saudades muitas, a sentir ainda mais a tua falta, a querer de volta aquele bocado que me faltou durante todo o dia. para que possas entrar mais adentro de mim. para voltar a ver o sorriso mais bonito do bairro.

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