A luz pela noite





vivíamos de noite. e sem trocarmos nenhuma palavra, tornámo-nos uma habituação previsível. nas noites que se iam seguindo, uma pela outra, uma diferente da outra, uma crónica dependência. 

deu-se uma história pelas mãos que desciam escuras. pouco importava a quantidade de pessoas que se tinham tocado pelo caminho. pouco importava nada. 

- escreve-me. escreve-me.

mas as cartas sem endereço, porque as ruas estavam cheias de condomínios iguais. as cartas sem correio. 

mas havia história para contar. nada deste mundo de deleite. nada deste mundo prometia as noites atrás de outras noites.  bastou dizer que era história. 

conhecemo-nos e era de noite. um final de tarde nublado, sem sucesso. eu passeava uma garrafa de vinho debaixo do braço. seriamente ébrio. embriagada portanto. galopava porque o efeito imaginava cavalos. com mais pressa que o vento de costas. galopava e pensava que nunca saberia descrever as costas do vento, quanto mais as tuas costas. estragava o vinho porque a gravidade determina a presença e o lugar das coisas. 
procurava as horas pelo sol que insistia em não se apresentar como um senhor. pensava: faltam relógios nas ruas. 

e à porta do Teatro o anuncio do teu aparecimento e os bilhetes esgotados. uma noite, uma garrafa de vinho, as ruas sem relógios e os bilhetes esgotados. 

- escreve-me. escreve-me.

e à porta do Teatro, um dador de estupefacientes a fingir-se artista. sentado no jardim feito sala. um bloco por cima dos joelhos e um lápis desfeito. era um artista. não fossem os braços picotados. não fossem os dentes ausentes. não fossem os espasmos. era um artista porque o lápis desfeito. desenhava por palavras faladas. precisava de público porque este escolhia o rosto que urgia. 

outros artistas mais à porta do Teatro. um poeta sem braços. uma mina ou uma catana a contarem o passado de braços que se enterraram antes do corpo. um poeta sem braços que lia poemas antigos, escritos no tempo dos membros ainda. uma pequena estante de cadernos usados. rabiscados vezes sem conta pela chuva impeditiva das palavras.

um contador de histórias surdo. a criar frases inexistentes. dialectos corrigidos pela surdez de quem não ouve o que explica. histórias quase sempre breves na duração e prolongadas no contexto. 

um pianista em trabalhos forçados com um brinquedo de criança. com teclas a menos e a mistura dos agudos e dos graves. composições musicais apresentadas como requiems. a lembrarem que todos morrem quando nascem. cada tecla ainda presente, a chorar a morte instantânea dos que nascem.

e outros mais artistas à porta do Teatro. como que aguardarem um lugar no palco em que mais tarde te encontraria. 

consegui trocar a garrafa de vinho por um bilhete. garrafa que vi depois ser partilhada pelos artistas do surrealismo poético. 

ao entrar pela cortina negra, estendi o bilhete carimbado à rapariga-homem sentada por trás de um balcão quase pobre. e entre mim e a rapariga-homem, o antónimo de intimidade.

sentei-me nos lugares últimos. a sala escura. o palco escuro.  só depois das batidas um candeeiro. uma luz solitária contra o teu rosto. uma voz:

- não preciso de silêncio. já não tenho em quem pensar.

e a voz a repetir a frase todas as vezes que os teus olhos fixavam a luz do candeeiro. e não foi preciso fazeres mais nada. ganhaste-me naquele gesto e naquela frase.

a peça era de Brecht. qualquer coisa revolucionária. sem ambiguidade alguma. directrizes irreversíveis sobre o caminho perfeito para a quimérica estética. 

sinceramente. pouco me importou a peça. 

não bati palmas. saí da sala que te aplaudia de pé. todos enternecidos pelo teu cabelo dourado. comovidos pela tua escolha de silêncio. 

saí da sala para recuperar a garrafa de vinho e terminei a noite abraçado ao poeta sem braços. lembro de cantar coisas incríveis que tenho pena de não conseguir lembrar as palavras. juntos, eu e o poeta sem braços, a corrigirmos as imperfeições um do outro. 

continuava de noite quando cheguei a casa. completamente bêbado. mas uma bebedeira terna. capaz de percorrer páginas e páginas de poesia na busca do teu cabelo dourado.

mas adormeci. fui adormecendo devagar no chão a olhar para o candeeiro desligado. 

e sei que tudo isto poderia ser uma história contada pelo contador de histórias surdo, porque no escuro curto da minha sala, fui vendo, amiúde, o candeeiro a acender brevemente a luz e desse espanto surgir o teu cabelo dourado perseguido de uma voz:

- não preciso de silêncio. já não tenho em quem pensar.

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