De como Deus regressou a casa

 


[Antes de iniciarem a leitura deste apontamento, peço que ouçam a composição musical de Astor Piazzolla chamada Oblivion.]

                O mundo adormeceu com a morte de Diego Armando Maradona. A profecia prometida finalmente acontecia. O mais belo artista de futebol entrou no reino dos céus e não deixou tempo para despedidas. Subiu a escadaria sem avisar aqueles que vestiam a sua pele. Caminhou devagar, ao longo de sessenta anos, para o lugar a que sempre pertenceu. Não era Deus quem o esperava. Não era o paraíso que o abraçava. Antes, o nada, esse espaço invisível onde poderia finalmente aguardar o eterno retorno.

                O mundo acordou e Diego, o revolucionário, não voltou.

                Como tantos argentinos, também eu o esperava. Como tantos argentinos, também eu o chorava. Como todos os argentinos, napolitanos, amantes do erro, também eu sofri na ansia de acreditar que nunca mais iria poder ver o maior de todos os tempos.

[O dia vinte e cinco de novembro de dois mil e vinte marca na minha cronologia o dia em que o futebol acabou.]

                Infelizmente não fui um dos contemplados que teve a oportunidade única de o poder ver a jogar em tempo real, muito menos ao vivo e a cores (ou a preto e branco). Mas felizmente cresci com as histórias dos mais velhos sobre aquele que foi capaz de desafiar a força da gravidade, como quando me descreveram aquele malabarismo mágico nas barbas de Peter Shilton. Contaram-me também que, no auge da sua força conseguiu resistir aos avanços de um italiano de nome sensível (Claudio Gentile), que no meio de um tango constante de Diego, o conseguiu ceifar vinte e três vezes. Mas a história mais bela de todas as que me contaram, elevo aquela em que me descreveram o grito de revolta em pleno Olímpico de Roma, perante os assobios ensurdecedores dos adeptos italianos e sob o olhar dos atletas alemães, Diego Armando Maradona furioso e provocador gritava a alto e a bom som por cima do hino argentino:

- Filhos da Puta, Filhos da Puta.

Nesse tempo, ainda não sabia o que era o socialismo. Ainda não tinha percorrido o pensamento de Fidel Castro nem sequer identificava a cara de Ernesto Ché Guevara entre qualquer outra. Era um miúdo que ouvia as histórias sobre Maradona e não percebia a dimensão do jogador e do Homem. Mas sabia que havia algo de diferente. Era uma atmosfera diferente que girava em redor dos momentos descritos por todos aqueles que seguiam a carreira daquele que já era unanimemente considerado o melhor jogador de todos os tempos.

Cresci a ver as cassetes VHS do campeonato do mundo de 86 no México, e do campeonato do mundo de 90 em Itália. E meu deus, como era incrível cada momento. O bailado contra os coreanos, o golo de antologia contra os belgas, o toque suave sobre a bola no golo aos italianos, e claro, aquela tarde para a eternidade contra os ingleses que ainda hoje é revista por todas as gerações de amantes do desporto rei. Tudo isto vi e revi vezes sem conta, até chegar à final quando Maradona isola Burruchaga e o mundo caiu aos seus pés. Estes foram as primeiras imagens que me lembro de me comoverem. Eu já sabia os resultados de antemão, mas havia sempre algo novo para descobrir. Como perceber a qual altura do lance contra os ingleses em que Diego Armando Maradona pensou:

[que se foda, agora é até à baliza.]

E de certeza que pelo caminho que percorreu foi pensando em muitos outras coisas. Afinal, carregava todo o peso de uma Argentina ferida de outras batalhas, e sobretudo, tinha dentro de si um coração que sonhava desde menino com uma taça que lhe pertencia desde o berço.

                Aquele é seguramente o melhor golo da história do futebol, porque está carregado de simbolismo, de poesia e até daquilo que nunca acreditei: de destino. Aquele golo estava escrito desde que Diego entrevistado na mocidade disse com palavras de certeza:

                - Eu tenho dois sonhos. O primeiro é jogar no campeonato do mundo. O segundo é ganhá-lo.

                O destino não existe. Sempre acreditei que assim fosse. Acreditar no destino é deambular pela vida na espera que algo aconteça. É deixar de ter sonhos porque estes foram sonhados por outros. A crença no destino afasta-nos da responsabilidade individual. E o homem só chegou até aos dias de hoje porque nunca deixou de sonhar. Mas por vezes, toda esta certeza é posta em causa. Quando um rapaz sem futuro escreve uma narrativa tão perfeita de como o tempo irá envelhecer, toda a certeza sobre o destino cai por terra. Quase que me faz crer que teve de haver uma Guerra das Malvinas para que esse rapaz sem futuro pudesse pisar aquele relvado no estádio Azteca para vingar um povo inteiro em revolta.

                A vida é por vezes inexplicável. Podemos pensar que o acaso é sistemático, que as coincidências são passagens esporádicas e que tudo se desenrola sem repetição. Nietzsche chamar-nos-ia à razão e diria que a vida é uma repetição permanente de acontecimentos, que tudo recomeça novamente vezes e vezes sem conta até voltar ao ponto de partida. E os momentos marcantes na história de Maradona exemplificam isso mesmo: a história repete-se, mas com finais altamente improváveis.

                Após a final do campeonato do mundo no México, a Argentina e Maradona fizeram questão de nos mostrar novamente essa teoria. No mundial de Itália em 1990, Diego nem precisou de sair de casa para jogar a meia-final contra a equipa anfitriã. Perante o seu público napolitano que o adorava (e adora) mais que a própria nação, fez o seu trajeto rumo à tão ambicionada final. O filósofo alemão haveria de se rir. Nesse encontro, nada mais nada menos que a seleção da Alemanha, de Matthaus, Klinsmann e Voller. Tal como quatro anos antes, a história de mãos dadas com o destino. E desta vez, nem Maradona nem Caniggia valeram por outros nove. A seleção das Pampas perdia, e o eco triste de Diego Armando Maradona voou baixo pelas bancadas de um Olímpico de Roma colérico pelos modos provocatórios do astro argentino.

                E a partir desse dia, ou no meu caso, dessas imagens, comecei a gostar de futebol.

               

                Volto a Astor Piazolla e ao seu Oblivion. E sem vergonha, choro a morte de um dos meus ídolos. Recordo, ao olhar para as fotografias que encontro, tudo aquilo que representou para todos nós. E que ninguém ouse dizer que em determinado momento da sua vida não sonhou fintar, marcar e ganhar jogos como Maradona fez. Que ninguém ouse alguma vez colocar em causa a profundidade do homem Diego. Porque todos queriam jogar como ele, mas nunca houve quem quisesse ser Diego Maradona.

                A sociedade mudou muito, assim como essa mudança também foi acontecendo no futebol. Já não há espaço no futebol (nem na sociedade) para Maradona, ou George Best, ou Johann Cruyff. A imagem limpa e cândida é agora o novo modelo para todos aqueles que ambicionam ter a riqueza de um futebolista. A bola deixou de ser o objeto concreto de criação. Somos todos filhos de uma oficina que nos ensina a dizer muito e a pensar pouco. Cada vez nos afastam mais do coração uns dos outros. Já não há encontros fortuitos com a rebeldia de ser diferente. Somos um pensamento cada vez mais igual. Por vezes, no meio desta igualdade desigual, surge um errático que é capaz de virar o mundo do avesso e carregar consigo um país inteiro, numa revolução permanente que deixe desabrochar o melhor de cada um.

                Maradona foi tudo isto. Trouxe poesia aos mais pobres que não sabiam ler. Levou um jardim inteiro para aqueles que sempre tiveram medo de lutar. Entre tudo isto, trouxe o futebol de volta àqueles que o haviam perdido algures no tempo. Foi assim em 2010 quando voltou como treinador da albiceleste, foi assim quando dançou embriagado com uma adepta nigeriana em pleno camarote no campeonato do mundo de 2018. Sempre Maradona, fiel a si e aos seus.

                Hoje custa a dizer que já não o temos entre nós. Não adianta pensar que a matéria se transformou em algo diferente e que o paraíso o irá acolher. Não iremos mentir às próximas gerações. Se há coisa que aprendemos com Maradona é que de nada vale esconder um propósito. A realidade do agora é de que nunca mais poderemos esperar nada de Diego. Ele não nos vai surpreender mais.

                Resta-nos lembrar o nome, a história e as jogadas. Esqueçam os golos, esses foram apenas o ponto final de um poema constante. Nunca deixemos de dizer, quando for apropriado e a falta de talento alheio o permitir:

                - Aqui não há Maradonas!

               

                Coloco novamente Astor Piazzolla a tocar. Visto a camisola do Boca Juniors que comprei de propósito para este momento. Tem nas costas o número 10 e o nome Maradona. Estou gordo e envelheci depressa. Faço o caminho para o quarto do meu filho. Ao entrar, ele surpreende-se, afinal nunca viu o pai com nenhuma camisola de clube vestida. Sento-me à beira da cama e digo-lhe:

                - Filho, hoje vou apresentar-te ao maior jogador de futebol de todos os tempos.

                Ele haverá de se comover com as minhas descrições. Eu irei chorar a relembrar o dia do adeus. Mas contarei toda a verdade. Polémicas à parte, importará explicar-lhe que estes são tempos complicados para os sonhadores, mas que no meio das trevas haverá sempre uma jogada ou uma habilidade do Diego Armando Maradona para nos fazer lembrar que tudo pode voltar a ser verdadeiramente belo.

                

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