O treinador mais humano do mundo
Quando
me perguntam se joguei futebol, eu respondo sempre da mesma maneira:
-
Joguei no Sporting Clube de Linda Velha.
A
resposta tem muitas histórias por dentro. Não é de sentido único. Porque na
verdade nunca joguei futebol, vivi o clube anos a fio. Toda a minha adolescência
e idade adulta. Foram muitos anos que começaram naquela tarde de Abril de 1997,
no dia em que tive o meu primeiro treino de captação.
Aos
catorze anos pouco sabemos. A escola ainda está longe de terminar, as miúdas olham
pouco para o interior, ouvimos músicas que nos vão envergonhar mais tarde,
andamos de autocarro e na maior parte das vezes a pé, fumamos às escondidas dos
adultos e, na grande maioria dos jovens, sonhamos em ser jogadores
profissionais de futebol.
Foi
com essa idade que cheguei.
Para
ajudar ao meu nervosismo de futebolista com poucas capacidades, escreveu-se no
destino que o treinador seria o meu tio.
E
é aqui que começa o que pretendo contar.
O
treinador chama-se Carlos e é o meu tio. Homem que me viu crescer a uma distância
curta. Um familiar que cresci a respeitar e a invejar.
Quando
era mais miúdo, passava dias inteiros a jogar à bola com o filho do meu tio. A
jogar como quem diz, a incentivar o puto com palavras de primo mais velho:
-
Puto, tens de ir à baliza. Tu és bom guarda-redes. Eu faço os remates e antes
disso vou narrando o jogo e fazemos disso um campeonato a fingir.
O
meu primo João, a desgosto, lá ia para a frente dos cortinados do quarto levar
com uns tiros valentes do primo que tinha mais 7 anos que ele.
[eu tinha 11 anos e o João 4. Era
uma diferença grande de cabedal e de esperteza]
Por
vezes o meu tio metia-se no meio do jogo e pedia para eu ir um pouco à baliza
porque não queria ver o filho a chorar por estar na baliza pela eternidade. E
eu cedia, sem antes lhe garantir:
-
Carolas, vais ser um guarda-redes do caraças!
Por aqui se vê que havia muita proximidade,
cumplicidade. Mas havia muito mais. Nas férias do verão, o meu tio carregava o
Seat Marbella de tudo o que tinha em casa e ainda sobrava espaço para mim e
para o João irmos sentados sem cinto, à grande e à francesa. Arrancávamos para
o Algarve e desculpem-me a falta de humildade, mas eram as melhores férias de
sempre.
Casa
com piscina, um quarto só para os putos, praia o dia inteiro com direito a dar
umas voltas nas boias ou nas gaivotas. Era tudo impecável. Na piscina, era tudo
nosso. Só a tínhamos de partilhar com os gordos que vinham do Porto armados aos
cucos, a dizerem asneiras e a mandarem bombas e a cheirarem a fritos! Era tudo
nosso e só tínhamos de ter cuidado e não abrir os olhos debaixo de água por
causa do cloro. Mas nós eramos miúdos, queríamos la saber de pormenores. À noite
é que eram elas, com olhos de soldador sem óculos, era um ver se te havias.
Mas
isto eram as ferias.
E
foi numa dessas férias que me senti pela primeira vez um jogador de futebol a
sério.
Fomos
a Ayamonte. Andávamos a passear pelas ruas estreitas e ao passar numa loja de
desporto, o meu tio fez sinal para entrarmos e comprar umas chuteiras para o
João. Mas, para surpresa minha, olhou para mim e naquele jeito que muitos
conhecem:
-
Vah, escolhe lá umas para ti.
Os
meus olhos brilharam. Eu sabia lá que chuteiras queria. Eu só tinha calçado
umas Diadora Roberto Baggio emprestadas. Ali, naquela loja espanhola havia
botas que só tinha visto na revista Onze Mundial. Eram Adidas Predador, Kronos,
Copa Mundial, eu sei lá. Eram todas bonitas e eu podia escolher a que eu
quisesse. Acabou por escolher as botas mais bonitas de sempre: Lotto de palava
verde. E eu, que não jogava um pirete, calçava melhor que muitos.
Nessa
altura o meu tio Carlos já era meu treinador há algum tempo. E sempre mostrou
uma idoneidade incrível. Nos anos em que foi meu treinador, nunca me favoreceu.
Havia uma ligação familiar que não se revelava dentro do campo. Mas acho que eu
também lhe facilitava a vida. Era mais fraco que os outros e pouco me importava
que jogasse pouco. Eu era um gajo de balneário. Era o primeiro a chegar e o
ultimo a sair. Estava em todas. Faltava-me era qualidade com a bola. E também escasseava
de músculos e tamanho. Por isso era um regalo ouvi-lo do banco, quando me punha
a jogar:
-
Porra, estás com medo? Quem tem medo não pode jogar à bola! Oh Bernardo, o
defesa para te comer tem de te cagar! Caralho do miúdo!
Eu
sabia que naquelas palavras vivia um carinho de tio para sobrinho. Havia exigência
e um risco que eu nunca pisava. Como naquele fatídico dia, poucos treinos
depois do início das captações, em que ouvi o primeiro sermão do treinador:
-
Bernardo, ou prendes esse cabelinho de maria amélia com uma fita ou não te
deixo treinar.
E
a vergonha de ter de prender a guedelha com um elástico só para poder entrar em
campo, vestido com aquelas camisolas de treino de lã sintética, que picava nos
mamilos e fazia crescer barba no peito! Mas cumpria as ordens do mister.
Agora
que recordo essas alturas, daqui deste presente que se faz futuro, cada vez
mais longe dessas memórias tremendas, concluí que ele sempre me protegeu. Como
no dia em que cheguei atrasado para o jogo e o coração do meu tio Carlos
encolheu para me dizer que não tinha como desculpar-me, que tinha chegado
atrasado 10 minutos e que não tinha hipótese.
[Sorte a minha que o Luís Neto se
esqueceu das chuteiras em casa e ficou ele no lugar do décimo sétimo, a ver o
jogo da banca]
Mas
não foi só nesse momento particular, porque eu sei, hoje adulto sei que de
todos os jogos que fizemos juntos, mesmo aqueles em que não tinha quaisquer
chances de jogar, ele me punha nem que fosse 5 minutos. Era o jeito do meu tio
de me dizer que gostava de mim. E garanto-vos, ele sempre se lembrou de mim.
Nesse fizemos uns 20 jogos, e eu joguei em todos, na maioria não mais do que 10
minutos. Há razão era previsível, mas eu era miúdo e nem me apercebia. Ou
melhor, até tinha noção das evidências, mas fingia que não. Eu divertia-me mais
do que os outros.
Mas
o momento chave da minha aprendizagem com o meu tio deu-se naquele mítico
carro: Seat Marbella. Era primavera e o meu primo João estava armado em cromo
de caderneta, quando eu do alto da minha arrogância juvenil lhe disse em maus
modos:
-
Puto, tu és estupido!
Não
foi preciso muito para perceber que o meu tio Carlos não tinha gostado muito.
Virou-se para trás e com a voz mais calma do mundo, aquela serenidade que nos
atinge quando sabemos que fizemos merda:
-
Nunca mais chames estupido ao teu primo. Que seja a ultima vezes que chamas
estupido ao teu primo.
Acho
que foi nesse dia que percebi a importância das palavras.
Mas
isto tudo para lembrar o homem que foi para muitos o melhor treinador de um único
clube. A todos que com ele começaram, aprenderam que o futebol vem depois da
amizade. E foi isso que me fez lembrar dele. Hoje o meu clube já não é o mesmo
daquele dia de abril de 1997. Ganhou amplitude. Fez história e continuará a
fazer. Onde cresceram muitos miúdos que já nem precisavam de um sonho. Alguns
ainda o conheceram como o mister Carlucci, senhor de um coração incrível. Aos
imensos que conheci e que comigo jogaram, recordam-se que nunca nos deixou para
trás em momento algum. Aqueles que não tinham como chegar ao treino e que ele
ia buscar no seu Marbella. Aqueles que, como eu, não tinham jeitinho nenhum
para o berlinde e que o meu tio Carlos deixava treinar todos os dias. Aqueles
que conviveram no balneário, nos jantares, nas viagens de carrinha para os
jogos. Aqueles que ouviram a mais mágica historia de sempre:
-
És maluco! Sabes quantos golos fez este menino no campeonato de Iniciados? 28
golos, a médio centro!
Ou as peladinhas em que espalhava
perfume, cheio de ratos nas pernas, a fazer lançamentos longos de 40 metros. A
todos os que viram esses momentos e que privam com o meu tio Carlos, sabem bem
que são privilegiados.
Hoje
lembrei-me do meu Tio Carlos. E das poucas vezes que o vejo agora, guardo para
mim aquilo que aprendi nas memorias que escrevemos, que mais importante que o
tempo e que tudo o resto, é a importância das coisas belas do mundo. E o
Marbella era incrível, e os verões no Algarve eram intermináveis, o João podia
ter sido um grande guarda-redes e o Sporting Clube de Linda Velha precisava de
um regresso memorável do mais humano treinador do mundo.
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