Não Conheço Nenhum Escritor

     


Tenho trinta e nove anos e nunca conheci nenhum escritor. O mais próximo que estive de um escritor foi na feira do livro, mas nem aí consegui aproximar-me muito. Nunca sei o que dizer, nunca sei o que pedir. Uma vez estive a poucos metros do António Lobo Antunes e tremi por todos os lados, recordava as entrevistas que dera e as respostas cruas, a minha vergonha intelectual de nada saber. O Lobo Antunes de ar aborrecido a assinar os livros, talvez enfadado pelo tamanho da fila que ainda o esperava. E eu a pensar que me sentaria ao seu lado e lhe diria quase nada, com o saco vazio dos seus livros porque os tenho guardados em casa de os comprar fora da feira por medo do ímpeto de pedir um autografo. E se há escritor que tenho todos os livros,

[não me deve faltar nenhum agora que penso a fundo]

E os outros senhores que escrevem também la estavam. O Ondjaki desenhava flores por cima do nome. O Agualusa parecia estar lá todos os dias, galã de literatura de sorriso aberto só lhe faltava fazer-se de convidado para jantar.

                Certa vez, não sei precisar a data, estive separado do Afonso Cruz por um degrau. Só tinha lido um livro dele

[Jesus Cristo Bebia Cerveja]

E deu-me uma branca do que tratava a história. O pânico de que me perguntasse se tinha gostado, que personagem iluminava a página 122. Qualquer pergunta que me deixasse desarmado e humilhado. Não subi o degrau e continuei a descer o Parque Eduardo VII.

                Não conheço nenhum escritor. Por isso estranho tanto este meu gosto que nem sei de onde possa ter nascido. Em casa, na infância, não havia leitores. Andei dez anos a ler A Flecha Negra do Robert Louis Stevenson e a Viagem ao Centro da Terra do Julio Verne. Alimentava-me do final misterioso do primeiro e ainda hoje vejo a flecha negra no chão sem perceber quem era o atirador. Mas como dizia, não existiam leitores em casa. A literatura chegou-me tarde. Apresentei-me sozinho aos clássicos, mesmo sabendo que não estava preparado. Ler requer treino, preparação. Não acordamos a ler Steinbeck. Começamos na Turma da Mónica e com o Tio Patinhas. Andamos ali à deriva com as aventuras juvenis e de um momento para o outro aquilo já não nos chega. É como com a música. Não nos levantamos um dia a ouvir Debussy, é um longo caminho até chegar a esse ponto, e por vezes nunca lá chegamos. A literatura é a arte que nos exige muito do que temos dentro. Quando encontramos um livro não interessa o que sabemos, o que aprendemos, antes, o que sentimos, o que se guardou, o que fica cravado.

                Não conheço nenhum escritor.

                Aos dezassete anos, por recomendação da professora de Filosofia, descobri o Bertrand Russel e a sua Conquista da Felicidade. A partir desse dia tudo mudou. Devo ter lido o livro mais de dez vezes. Se me questionar sobre o que escrevera o Russel, não sei. Nunca soube responder. Mas é certo que desde esse livro que a literatura nunca mais me largou.

                Desde aí, já li muito livros, e sempre achei que foram poucos. Considero-me um “leitor lento”, como li algures há pouco tempo numa publicação de uma ávida leitora de livros. Orgulho-me de nunca ter desistido de um único livro. Com o passar dos anos tornei-me mais rigoroso. Já não procura ler todos os clássicos por obrigação. Tenho até dificuldade com os autores que não são do meu tempo, que escrevem as minhas décadas. Se foi escrito há dois séculos, talvez demore até me chamar pelo nome. Já lá vai o tempo em que queria ter os Dostoievski completos para ser um leitor vaidoso. Mas esse tempo já se foi.

                A leitura nunca deve ser vaidosa. Um bom leitor não fala do que leu. Tem até dificuldades em partilhar o livro que lê. A escolha de um livro é um ato de intimidade. Por isso sinto-me a violar todas as leis quando espreito os livros que vão debaixo dos braços dos outros. Chego a julgar, a ser arrogante e cruel com as escolhas. E admito que não é saudável. Mas por vezes, é a sensação de andar aqui sozinho.

                Não tenho amigos escritores e são muito poucos os amigos leitores. Escrevi dois livros e nenhuma pessoa à minha volta completou a sua leitura. Quando acabo de ler um livro não falo com ninguém. Arrumo na estante e passo para outro. Às vezes respiro um pouco entre cada livro, mas nem uma única palavra. Tudo aquilo que sinto não consigo passar ao outro. Porque ler é desaparecer.

                Não conheço nenhum escritor e esta crónica devia ser sobre isso. Dou por mim fora de um círculo que talvez me pudesse trazer mais proveito criativo. Mas nem isso ambiciono. Não frequento cursos de escrita criativa porque tenho medo de que o escritor que sonho ser fique igual a tantos outros. Gosto da minha escrita porque é virgem. Mas a cada livro que leio, tenho a ideia que não faria melhor.

                Um dos escritores que mais mágoa me deixa é o Bruno Vieira Amaral. Porque é tremendo. Não lança um livro mau. Tem um rigor de oficina que só encontrei na poesia de Herberto Helder. Os livros são todos diferentes e ele nada por todos os estilos, sem deixar de lado aquilo que o torna diferente dos outros. É o escritor da minha geração, que escreve o tempo de hoje. E é tão difícil encontrar um escritor que nos fale dos tempos de hoje. Ao terminar um dos livros dele, Hoje Estarás Comigo no Paraíso, fiquei vazio. Foi como chegar ao fim de tudo e perceber que não tenho por onde ir quando o único lugar onde poderia estar era na literatura, e esse lugar já lhe pertencia.

                Não conheço nenhum escritor. E deus me perdoe, mas que vontade tenho de estar a menos de um metro do Bruno Vieira Amaral e do José Luís Peixoto. Oferecer-lhes um dos meus livros e pedir-lhes um bocado de tempo, discutir os caminhos da literatura, perguntar-lhes como se constrói um leitor, como ganhar tempo, como recuperar de nunca ter lido o Moby Dick na idade certa, de me explicarem porque não me lembro do Inverno do Nosso Descontentamento do Steinbeck.

                Mas acho que já não vou a tempo. Esta crónica foi só um desabafo de alguém que não cresceu no meio dos livros, que teve de os descobrir sozinho, porque nunca pode partilhar o mesmo espaço com leitores ou escritores. É tarde e eu já não sou escritor desde que nasci.

               

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