Desconhecido
Os passos parecem mais pequenos,
aqui, neste abrasador dia em Serpa. A pele queima-se na mudança de cor e eu
aprendo que o Alentejo é muito mais do que casas minúsculas e terrenos por
estruturar. O Alentejo abre-se no horizonte sem que os meus olhos encontrem o
inicio das ruas e da cal. Uma métrica de muros que lembram os poemas fingidos
que outrora escrevi, poemas fechados que se abrem em brechas incorretas, sem
que as tenha pensado. O Alentejo perdido nas memórias que não me lembro de ter
percorrido em vida. Eu nunca estive em Serpa.
Os meus pés a incharem com o fervor
que os ilumina, quase um arco íris a surgir quando os tento molhar, quase
cores. As minhas pernas que teimam em andar, ritmadas com o vento que comunica.
Uma herdade enorme a ser o caminho que não escolhi. Um terreno abandonado pelos
caseiros que fugiram de amor. Uma casa que conserva a cal que lhe dá frescura
mas que lhe rouba a beleza dos amantes que morreram na cama.
Abro a porta da entrada com um
empurrão destemido, e logo as teias de aranha órfãs a cobrirem a minha testa. A
porta a abrir com um ranger que acorda os que antes viveram das manhãs.
Desconheço o corredor a percorrer os quartos. Abro os braços para que alguém me
receba. Ninguém me recebe porque o abandono já se deu muito antes do mundo
acontecer. Escolho os quartos que o corredor percorre.
O primeiro quarto tem somente uma
cama. Nem uma mesa de cabeceira a garantir que alguém chegou a despertar. Nem
um armário a garantir roupas antigas, pessoas a vestirem as mesmas roupas, traças
a comerem os restos das pessoas vestidas.
O segundo quarto é uma biblioteca.
Estantes enormes. Nenhum livro sequer. Sei que é uma biblioteca porque os
livros deixam o cheiro a vida nas estantes. Os escritores russos escondidos no
vazio das estantes, a serem traduzidos por camponeses que não tinham língua
mãe. Tradutores de imagens profundas de um alentejo-russo. Florbela Espanca em
lágrimas a sentir que fez parte de uma estante de livros. Todo um desgosto
maior que todos os desamores. Nabokov nas entrelinhas de uma estante, a jogar
xadrez com as duas mãos, a deixar-se vencer.
O terceiro quarto, o ultimo, perto
da cozinha, a cumprir as memorias de um casamento antigo. Uma cama e dois
corpos em esqueleto, vestidos com roupas ensoberbecidas. Sento-me a beira dos
lençóis e imagino quem terão sido. Estão deitados lado a lado, as mãos em
esqueleto não se excedem em caricias desnecessárias. Nem a aliança os une como
no amor. Apenas um tem o anelar embevecido, o outro, talvez um espírito mais
livre, mais desprendido, tem o esqueleto inteiro em solidão.
Decido abandonar a herdade. Não sei
antes juntar os restos dos mortos e justificar as covas abertas. Coloco-os na
mesma cova, juntos, como talvez tivessem sonhado. Não sei antes regressar à
biblioteca e escrever nas estantes: Florbela e Nabokov. Só depois saio da
herdade.
Regresso a Lisboa.
Decido-me por um passeio pela
marginal. Quero ver a praia. Quero intensificar a ideia de que não gosto da
praia. Na praia não nos conhecemos, apenas vemos pessoas. Não existe um
pensamento imortal perto do mar. É preciso conhecer a terra para que o pensar
seja eterno. Recordo a herdade. Escrevo num papel dois nomes fictícios: Maria.
Frederico.
A
Maria decidiu morrer quando se desconheceu. O Frederico decidiu morrer quando
se desconheceu. Ambos escolheram assim. Sem que houvesse profundidade. Sem que
a filosofia pudesse explicar. Deitaram-se na cama e sem darem a mãe, disseram
um para o outro: agora vamos morrer. E morreram na presença de Nabokov a jogar
xadrez, na presença de Florbela Espanca em lágrimas. As palavras de dois livros
que leram a serem fogo a queimar a pele. No suicídio intelectual encontraram uma
ignorância que desconheciam. E morreram.
Regresso a casa. Nesse retorno, onde encontro
os meus livros, os meus cigarros, os meus filmes, tenho a certeza que nunca me
irei desconhecer.
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