A luz que nos ilumina
Histórias Que
Tardam em Acontecer
[Epilogue,
Olafur Arnalds]
- Bom dia,
quero dois cafés e dois pastéis de nata.
Foi
nesta pastelaria que te conheci. Éramos muito jovens e eu tinha dinheiro para
pouco mais do que isto. Era no tempo em que os relógios ainda não eram digitais
e os ponteiros se ouviam desde os bolsos. Nessa nossa juventude em que a tudo
nos era permitido. Mudávamos de emprego pela vontade das mãos. Não havia
atalhos para uma vida confortável e tudo o que nos chegava era bem-vindo. Como
estas manhãs serenas antes de ires para a universidade. E eu que nem sabia o
que isso era. Estudar tinha sido sempre para os outros, nunca para mim, que
cedo aprendi que um Homem não se mede pelo que faz mas pelo que pensa, pelo que
sonha. E eu tinha poucos sonhos antes de ti. Aliás, antes de ti eu adormecia
muito depressa, sem querer acordar no dia seguinte porque o propósito de um dia
novo era inexistente. Lia Camus sem perceber o existencialismo. Viver era
trabalhar por poucos dinheiros e os gastos poucos apareciam antes do fim do mês.
A vida era uma jorna contínua, em que nos chamavam para executar a respiração
porque ao parar morreríamos. Mas depois de ti a minha vida organizou-se.
Tudo
começou nesta pastelaria.
Era
de manhã e eu pedi um café. Fiquei de pé porque tinha pressa. Quando jovens a
pressa é uma palavra que trazemos constantemente connosco. Somos ensinados
desde pequenos que a vida não espera por nós, que aquele que era o nosso tempo
já o deixou de o ser quando olhamos para trás. Começamos a andar, a falar e já
somos semi adulto com cismas. Incutem-nos as preocupações que devemos ter, e
sem darmos conta, crescemos mais do que devíamos. Era esse o momento em que me
encontrava. De pé, ao balcão, a olhar para a chávena escaldada de café e sem
imaginação sequer. Um homem crescido que fazia mudanças. Um trabalho como
tantos outros que ocupava as horas necessárias para que a noite chegasse terna.
Quando
entraste na pastelaria Aloma, eras uma menina com a imaginação de artista
plástica. Mas isso vim a saber mais tarde quando me replicaste num pedaço de
barro. Um operário feito Aquiles, com músculos definidos que só tu conseguias
ver. Tenho a memória exata dessa tarde. Tínhamos alugado uma casa em Xabregas.
Um T0 que dizias suficiente para a tua arte e para o amor que nos prendia um ao
outro. Nem uma televisão para companhia. Tínhamos os livros espalhados pelo
chão, empilhados e equilibrados nas paredes descarnadas. Tudo muito à mão, o
balcão da cozinha, o sofá, o fogão, o lavatório da casa de banho e a saída para
a janela que servia de luz que nos iluminava.
[caramba, nunca mais encontrei
uma luz como a que tínhamos]
As tuas mãos eram bonitas na
sujidade do barro, da água. A terra que se metia por entre os dedos para que
encontrasses a medidas certas do meu rosto e dos meus ombros. Dizias que era só
um busto, mas o que eu via era o lugar das coisas belas através de ti.
Foi
isso que vi quando entraste na pastelaria. Não te falei com vergonha de que não
tivesse nada de importante para te dizer. Esperei cinco dias seguidos. Cinco
dias em que cheguei à mesma hora para comprovar a tua pontualidade. Ao sexto
dia ofereci-te o Constantino, o Guardador de Vacas e de Sonhos, do Alves Redol.
Agradeceste e no dia seguinte devolveste-me o livro. Não disseste absolutamente
nada. Esperei mais cinco dias. Ao segundo sexto dia, voltei a oferecer-te um
livro: Miguel Torga, A Criação do Mundo. Mais uma vez devolveste-me o livro,
mas com duas semanas de atraso. Quando mo entregaste, apenas referiste que a
demora se deveu ao tamanho das palavras. Mas sorriste ao mesmo tempo que me
comovi.
No dia seguinte,
já sem a timidez feita bengala, cheguei-me a ti:
- Hoje não te
trouxe nenhum livro. Não tenho mais nenhum. Os bolsos estão vazios e a
bibliotecária não me deixa levantar mais nenhum enquanto não devolver os outros
dois.
[como poderia eu devolver um
livro que tinha o teu cheiro, que tinha sido folheado por ti, que tinha sido
lido por ti.]
A
partir desse dia nunca mais nos separámos.
Cumprimos
o nosso propósito. Jurámos ficar juntos pela eternidade das mãos e escolhemos
envelhecer juntos.
Durante
todo esse tempo quase infinito, não fizemos coisas grandiosas. Eu continuei a
trabalhar a contar as horas para chegar até ti. O trabalho era apenas o sítio
onde passava oito horas a pensar no regresso a casa. E tu eventualmente também desististe
de ser artista plástica. Algures no caminho, não me recordo com exatidão,
começaste a trabalhar como secretária de administração. Compraste tintas,
pinceis, telas e despejavas a criatividade toda nas paisagens que construías na
tua imaginação. Lugares mais bonitos que o T0 em Xabregas.
[acabamos sempre por envelhecer,
tarde ou cedo, o tempo envelhece depressa]
Mantivemos
o hábito das manhãs na pastelaria Aloma.
-
Bom dia Leandro, são dois cafés e dois pastéis de nata.
Ficávamos
por ali os dois. A ver a historia do filme que originou o nome da pastelaria. A
olharmos pela janela na busca dos personagens do nosso bairro. Afinal de contas
tínhamos crescido vizinhos em Campo de Ourique e as crianças que haviam
crescido connosco tinha também elas ganho idade. Os rostos da escola primária.
Os colegas de carteira agora de outro tamanho. As velhas e velhos que morriam
pelo caminho e as lembranças. Os filhos dos outros a correr e a mágoa de nunca
terem chegado até nós.
[aos vinte e oito anos o médico a
apontar para um papel a comprovar que eu não te poderia dar filhos]
-
Bom dia Leandro, são dois cafés e dois pastéis de nata.
-
Hoje vem sozinho senhor Augusto?
-
Claro que não, a minha mulher daqui a nada já aí está.
Quando
o Leandro pousou o pedido na mesa, colocou a mão no meu ombro. Havia nele uma
sensação de pena, de murmúrio, de luto. Os empregados da pastelaria tinham
mudado muito ao longo dos anos. Uma vida inteira de pessoas a vestir e a despir
a farda. Sempre que se iniciava um novo trabalhador, era o recomeço da
construção de intimidade com os fregueses. Com o Leandro não tinha sido
diferente. Conheceram-no rapaz e hoje era um homem feito, porventura com família
e um futuro.
[mas a mão no ombro a explicar a
ordem natural das coisas]
No
dia seguinte, a repetição do anterior. A réplica exata das palavras:
-
Bom dia, são dois cafés e dois pastéis de nata.
Mais
uma vez o tabuleiro a ser pousado e a mão do Leandro no meu ombro, desta vez
acompanhado das palavras:
-
Sinto muito senhor Augusto.
Ao
final de três meses consecutivos dos bons dias e da mão no ombro, o rapaz sentou-se
no lugar da minha mulher:
-
Senhor Augusto, não querendo ser intrometido, posso fazer-lhe uma pergunta?
-
Diga homem, que se passa?
-
A senhora Crisalda já faleceu há alguns meses, mas o senhor continua a vir cá
todas as manhãs. Faz sempre o mesmo pedido. Senta-se sempre na mesma mesa. Às
vezes fala sozinho que eu bem o vejo lá do fundo. Já todos comentámos que é
estranho. Há alguma coisa que possa fazer por si?
[as pessoas não entendem que
esperamos sempre por qualquer coisa]
-
Estou só à espera de ir ter com ela. Foi aqui que a conheci. Todos os dias que
entro aqui de manhã peço para que aquela porta se abra e que seja ela a vir-me
buscar. Não peço que venha sentar-se comigo. Queria que me viesse buscar. Sabes
Leandro, a minha vida depois dela organizou-se.
Foi
nesta pastelaria que te conheci.
São
nove e três da manhã. O Leandro já tirou vinte e oito cafés da máquina. Serviu
nove torradas e sete pastéis de nata. A pastelaria Aloma está a começar a
encher-se. A empregada nova, que deve ter pouco mais de vinte anos, limpou a
mesa que dá para janela maior, ajeitou o quadro do filme Aloma Of The South
Seas. Por indicação do patrão colocou a placa de reservado na mesa que recebe a
luz da janela maior no canto da pastelaria. Sobre a mesa estão dois livros
pousados, um de Miguel Torga e outro de Alves Redol. Atrás da empregada nova
surge o Leandro com dois cafés e dois pastéis de nata. Pousa-os na mesma e a
luz que ilumina o tampo brilhante entra repentinamente, como um raio, como uma
flecha imaterial.
São
dez horas e o Augusto não apareceu nessa manhã.
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