O Garoto


  Já não via o Leonel desde Setembro de 1997. Ao dia de hoje, temos ambos quase quarenta anos. Naquele passado não chegávamos aos 15 anos de idade. Os interesses eram diferentes. As preocupações, na certa, tão pequenas quanto o tamanho das nossas mãos. Assim de cabeça, passaram-se vinte e quatro anos.

 A beleza de encontrarmos amigos de infância, anos depois da última despedida, está nas historias que ambos lembramos. Ou melhor, as histórias que um de nós não se recorda e que, por outro lado, o outro memorizou no lugar das coisas importantes. 

 Depois de nos cumprimentarmos com um abraço fraterno, de gozarmos com o peso do outro, de nos reconhecermos nas diferenças dos anos, foi tremenda a passagem para a primeira história que cada um recordava daquele tempo. O Leonel atirou:


 - Sabes o que me lembro sempre de ti? De gostares de beber garoto e de teres posto a malta toda a beber um garoto no bar da escola!


 (tive vergonha de não me lembrar daquela chávena pequena de leite e café, mas foram apenas segundos.)


 - Sim, a tua mãe dava-te todos os dias 500 escudos e tu juntavas ali quatro ou cinco amigos e íamos beber um garoto. 30 escudos para cada um e estava feita a festa! Ainda hoje, quando bebo um garoto, lembro-me de ti!


 Enquanto o Leonel me contava este episódio, eu já não tinha trinta e oito anos. Era de novo uma criança de cabelo comprido, liso, escondido atrás das orelhas agigantadas. Estava sentado nas traseiras do bar da preparatório João Gonçalves Zarco (apelidada pela gente da terra como Escola da Junça). Na mesa quadrada, de chávena entre os dedos, feitos milionários, o Évora de camisa de flanela aos quadrados a pregar aos céus que Ronaldo Fenómeno eram dois: ele e o verdadeiro. Ao lado, de sorriso fácil e dentes brancos, o Faca, a contar aos restantes sobre o episódio do roubo da taça e da chuteira na loja de desporto de Algés, de como a polícia os apanhou em pleno ato e lhes ofereceu boleia para a escola em troca de uma reprimenda e uma visita à Diretora Antonieta. O cúmplice do roubo, Gonçalo Ladrão, menino de coragem emocional, destemido na arte de surripiar objetos alheios, mas cobardolas nos punhos, incrédulo pelo preço do garoto e pensativo no uso que poderia dar à chávena se a levasse consigo. Nessa mesa quadrada, onde cabia sempre um pouco mais de amizade, estava também o Leonel, com a mítica camisola do Real Madrid vestida, qual Seedorf, o símbolo da Kelme já com falta de letras e o patrocínio Teka a sair-lhe do estomago. O Leonel que nem era muito de andar pelo campo de futebol, mas das aventuras pela escola inteira em busca de alguma beldade feminina que lhe desse conversa para o dia inteiro. O meu amigo Leonel que tinha uma falha no dente da frente, que lhe oferecia a malandrice própria de quem sabe viver a vida, o visual dos puros, daqueles que o futuro sabe levar pelos melhores caminhos. 

 Ali estavam cinco amigos que não sabiam que um dia haveria de ser o último dia. Que talvez até tenha sido aquele. Ou provavelmente aquele até possa ter sido uma repetição de tantos outros. A infância num espaço temporal que existiu vezes sem conta e que se estendeu na nossa imaginação até este momento em que o Leonel repetiu:


 - Eu nem sabia o que era um garoto! 


 Quando regressei à conversa, já a minha infância me tinha passado inteira pela frente. Na forma do Zé Carlos e do seu pontapé canhão que fazia faísca nas redes atrás da baliza, ou no rádio-televisão que ele levava para a escola para podermos vero episódio diário do Dragon Ball, para não perdermos a morte do Freezer. As memórias incríveis do Fernando Évora a gabar-se de jogar bem todos os desportos, que se quisesse até afundava no cesto de basquetebol, não sem antes dizer que lhe apetecia pizza do pingo doce e encaminhar o grupo todo para almoçar aquele manjar que jurava serem mesmo italianas. 

 A infância a ter muitos lugares depois da história do Leonel. A lembrar-me da Ana Isabel, por quem me apaixonei perdidamente atrás do pavilhão D, que me ofereceu um beijo francês, logo a mim que só sabia dizer bonjour, um beijo que ficou por dar porque a vergonha e timidez de falhar era tanta que a deixei pendurada. Por pouco tempo, porque dois dias depois fugiu com o Celso de cabelo oxigenado e de cara bexigosa, que mais tarde, vim a saber, virou cabeleireiro. Talvez a Ana Isabel lhe tenha dado muitos beijos franceses na falsa promessa de abrirem um salão de beleza juntos. 

 E o Leonel a rir-se, com a mesma expressão de um tempo em que o Zé Carlos pé canhão subia ao telhado dos pavilhões e atirava la de cima as bolas de futebol, de vólei, de ténis, roupas, e sei lá mais o que. Coisas perdidas que o Zé Carlos encontrava nos seus devaneios de Homem Aranha. E os putos da mesa quadrada a largarem o garoto para ficarem com as bolas mais bonitas. O Senhor Gomes, contínuo, o Indiano, contínuo, ambos aos gritos a dizerem ao Zé Carlos para descer dali:


 - Tu ainda te matas Zé Carlos!

 - Não me mato nada oh descapotável! (o Sr. Gomes era careca)


 No dia seguinte, à mesma hora, os mesmos cinco à mesa, a bebericar um garoto e a profetizarem que o Zé Carlos era o maior da escola, que com ele ninguém fazia farinha. Mas entre dentes, o Évora a afirmar que nada disso, que se quisesse arrumava o gigante do Zé Carlos em três tempos, que era pequenino mas que sabia capoeira. E saltava da mesa para mostrar alguns passos, enquanto gritava suavemente:


 - Ninguém toca no meu garoto!


 Mas como no titulo do livro de António Tabucchi, O Tempo Envelhece Depressa. Com ele, também nós envelhecemos. Felizmente reencontramo-nos depois destes anos todos. O Évora, eu e o Leonel. Ao fim de 24 anos estamos de novo no mesmo espaço. Mas falta-nos qualquer coisa. Talvez seja a ausência do Faca, que não sei se continuou a assaltar lojas de desporto ou se continua com os dentes brancos brancos, de sorriso mascarado de malandro. Talvez seja a falta do Gonçalo Ladrão, que deve ter-se feito homem com juízo, largando a velha vida de trapaceiro mas de bom coração. Nem sei se o Zé Carlos continua a subir aos telhados em busca daquilo que os outros dispensaram um dia, tenho é a certeza que continuou a ser um bom gigante com o coração colado às mãos. 

 Sinto falta desta gente toda. 

Da Ana Isabel que me contaram que foi viver para o Dubai, para longe do Celso que deve ter feito carreira num salão de beleza que agora está muito na moda aparar barbas e cabelos. 

 Do Fernando Évora a marcar golos como quem respira no campo da Escola da Junça. A fazer pontaria ao Fernando Couto, também contínuo, que teimava em não nos deixar sair da escola sem autorização prévia. 

 Mas porque me comovi com as palavras do Leonel, sinto muita falta de pedir 500 escudos à minha mãe, descer de Linda-a-Velha à Junça a correr, de mochila Monte Campo às costas, entrar pelo portão da João Gonçalves Zarco sem passar cartão ao Fernando Couto, abrir as portas do bar da escola, pedir cinco garotos e sentar-me à mesa pela eternidade. Na condição do Leonel ter a camisola do Real Madrid vestida e de poder ouvir o Fernando Évora a dizer:


 - Ninguém toca no meu garoto!

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