A sala vazia




Um breve concerto sobrevoa os cabelos antigos do Pedro. Sobre si, a música nas palavras e uma distância de recordações obscuras e tangentes.
        Respira e na contagem da realidade supõe serem electricidade cerebral de enganos. As recordações.
        Tem na cadeira um fundo onde cabe apenas o seu corpo, a sua mente está desleixada à porta da entrada. Como se não fizessem parte do mesmo eu.
        O Pedro tem nos dedos a amargura de um cigarro e a profundidade de um gesto que ordena a clemência de mil almas. E nesse gesto existe alguém. Há sempre espaço para alguém nas entrelinhas de um braço de uma mão que não seguram absolutamente nada.
        A televisão é ruído. Nada mais. O Pedro nunca mais olhou para o vídeo que está parado na hora exacta do beijo. A fita da cassete, julga, talvez tenha evaporado, ou talvez as imagens se tenham gasto no tempo.
        Os quadros da sala estão todos virados para dentro. Apenas as traseiras das imagens são visíveis. Nada mais. Nada menos. Os quadros assinados por um nome que não quer ser lembrado estão escondidos. A vida dos quadros e das pinturas são a escuridão que não se acende.
        O Pedro queima os dedos porque a dor não existe na memória das mãos.
        A casa é de um silêncio que existe apenas na leitura de um livro. A solidão que arrasa o telhado acontece apenas nos escritos de uma carta para ninguém. A angústia das paredes é maior do que um abraço que não deixou nome.
        Só existe o Pedro.
        O engano é terrível. Descobrir o engano é a forma menos humana de romper com uma história. O Pedro não se sente Homem. Ele é matéria que se desfaz como se morrer fosse isso mesmo. Capaz de inalar fumo, incapaz de respirar.
       
        Há meses que tem uma folha por escrever. Um texto abandonado, como uma criança que se perde e chora a ausência de quem a realiza.
Escrever. Ele queria escrever.
As palavras ficaram presas nas paredes, no telhado, nos quadros, no vídeo. Mas existe um começo. Haverá sempre um começo.

“Tudo é verdadeiramente belo…”

Foram as últimas palavras que escreveu.
Nenhuma história se constrói para se deixar abandonada. Todas as palavras são importantes, todos os sonhos são para serem construídos, todas as frases são um romance.
Mas o Pedro perdeu a capacidade para escrever. Já não acredita nas palavras. Ele já não tem palavras dentro. As prosas já foram todas ordenadas por outros. Acabou-se. O Pedro escreveu “belo” e finalizou o seu propósito de um dia ter começado a escrever. Já foi. Já não é. Não mais será.
As palavras já não acontecem.


Alguém bate à porta.
O Pedro ouve mal porque as memórias são duras. Esqueceu-se como se responde. Há muito se foi a sua cultura social, o seu protagonismo em diálogos, o seu cavalheirismo, o seu oportunismo oral.
A porta abriu-se com a força de uma mão que o Pedro não queria controlar.
“Tudo é verdadeiramente belo até deixar de o ser.”

Ao abrir o sorriso que se escondia por trás da porta, o Pedro adoptou mais palavras. O verbo ser fazia agora renascer um resto de linhas. O sorriso cremoso não percebia que tudo aquilo era magnífico.
A folha escrevia. Deixava-se escrever.
O Pedro percebia agora porque razão a dor existe. Percebia no exacto momento em que esta desaparecera.

O sorriso de seda entrava enquanto os seus braços esticavam e tocavam a parede. O sorriso de veludo virava os quadros e um brilho brotava desde os cantos pontiagudos da moldura. O sorriso de penas reescrevia o nome das pinturas e era brilhante. As paredes como um quadro de Monet, o chão como relva que permite o verde ser mais verde, a mobília em modo valsa, os tapetes como toalhas pousadas em areia de praia, a cadeira a formar um corpo que não era o Pedro. Os braços abertos daquele sorriso e tudo a repetir-se.

“Tudo é verdadeiramente belo até voltar a ser todas as vezes.”

O Pedro já não queimava os dedos. O volte face era a sua vida novamente. A perdição de querer ousar novamente. Os livros que voltara a ler. As palavras que renasciam como dicionários reinventados. E o vídeo que mudava de tempo. A cassete que gravava um novo amor.

Fechou a porta. Despediu-se das paredes e do telhado. Desligou a televisão e prometeu nunca mais voltar.

Dentro da sala ficou um poema escrito na parede despida de quadros.

Nada o é sem que o seja,
Sem que alguém o considere,
Nem tu existes,
Nem eu te esquecerei.

Comentários

  1. tudo quanto não sabemos esquecer existe.
    cruamente vendo, tens razão "nada o é sem que o seja".
    "o pedro não queima mais os dedos, tem um novo amor"
    li algures "nunca o inverno veio para ficar nem a primavera vai embora para sempre"...
    história bonita, gosto dessa doçura com que escreves tudo.
    mas olha, um abraço tem sempre um nome e um beijo também.
    M.

    ResponderEliminar
  2. :)é que passo por aqui sorrateira, pé ante pé, só porque gosto de te ler.
    este teu texto é magnifico. tenho este hábito de apenas reter na memória os lugares onde ler, vale a pena, não memorisando o que li. gosto de reler sentidos assim, como estes que compartilhas. é um dizer simples, mas terno. pode ser nostalgico mas é sereno. tem tanto de saudade! eu gosto de saudade, lembra coisas que foram boas e porque as lembramos, ainda são.
    não sei as letras das músicas, por exemplo. nem sei dizer um poema de cor. perde a graça quando os decoramos. tem outro sabor, reler. quando relemos, não revemos, sentimos sempre com "olhar diferente", como se não fosse o mesmo texto. é interressante como o nosso estado de espirito do momento nos faz sentir as coisas sempre de forma diferente.
    que te parece, Bernardo :))?
    como é que acontece contigo?!
    M.

    ResponderEliminar
  3. Eu releio o que escrevo. Nunca corrijo. É hábito meu guardar as palavras como nasceram, ficam assim, como vieram.

    Mas gosto de decorar um poema. Sei alguns, poucos, mas os que adoro, sei decor. Pelo menos os mais curtos.

    Mas continuo sem saber com quem escrevo???

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares