Ecos de tempo




      "Voltei a ver-te ontem. Quis roubar-te daquele momento e dar-te a mão pela imortalidade do tempo."


O Euclides tem a cara a um palmo das velas. As chamas sabe-as eternas, improváveis de serem apagadas por sopros de ventos informes, fortes. Até esse cretino ato de soprar, sem necessidade nenhuma de contar os anos, encontra a astúcia de um inventor que calculou velas que não se querem fazer fumo. Como se devêssemos permanecer pela mesma idade e deixar para a cera o desígnio do nosso próximo passo.
            Muitas pessoas deveriam bater palmas, intervaladas com gritarias estridentes, como uma cadência preparada de antecedência, com um dia de treino antes. Mas naquele caso não havia ninguém. O Euclides soprava as velas sozinho. Apenas a sala, a mesa, o bolo e o Euclides.
            Escolhera a noite assim há um mês atrás. Pensara que os anos depressivos no seu dia de anos, consecutivos, em repetição, em continuação, já lhe tinham servido de emenda. Cansara-se de acordar todas as madrugadas desse dia com uma tristeza incessante, uma tristeza profunda que nunca houvera saber explicar a si, muito menos aos outros. Escolhera a noite assim, ou pelo menos mais ou menos assim. A primeira preparação não tinha bolo. A segunda preparação tinha bolo mas não tinha velas. A terceira preparação tinha tudo porque a mãe lhe ensinara desde cedo: o bolo é a certeza que estaremos sempre aqui filho. E a mãe tinha sido sempre tudo nesse dia. Desde que se lembrava de ouvir, que a mãe lhe construía o bolo com uma ternura clássica, que a mãe lhe colocava as velas no centro do bolo, que a mãe começava a canção dos anos, que a mãe o beijava no final da canção, que a mãe o amava mais depois de cada canção, que a mãe, que a mãe, que a mãe. Tinha tantas saudades da mãe.
            A noite era mais noite agora que sozinho a morder as velas, sem acreditar em desejos, sem perceber porque mordia as velas sem nunca ter acreditado em desejos. Era a irmã que sempre lhe gritava do canto da mesa: mano, morde a vela depois de pedires um desejo, se ele for verdadeiro, acontece. E ele mordia depois de ouvir a irmã. Porque acreditava nas palavras da irmã como se só ela fosse verdade. O Euclides era aos olhos da irmã o irmão sempre mais novo, aquele que ajudava a escolher, o que ajudava a abrir as prendas no natal, o pequeno que era sempre mais pequeno, o que nunca lavava a louça, o que nunca arrumava o quarto, o que se demorava no banho, o que nunca queria comer a sopa por embirração. Eram dois irmãos que existiam desde o mesmo ponto porque os irmãos nascem longe no tempo, mas morrem no mesmo dia.
            Adormecia a noite enquanto o Euclides cortava a primeira fatia de bolo. Colocando-a num guardanapo, guardando-a à frente da única cadeira disponível à volta da mesa. Cortava a segunda fatia de bolo. Colocando-a num guardanapo deixava-a no centro da mesa, onde nenhuma mão em concha pudesse sonhar. Era aí, nesse mesmo espaço que sempre deixava a segunda fatia. Desde o tempo dos coisas bonitas que o fazia. Com a ilusão que esse tempo pudesse ser novamente tempo. As coisas bonitas talvez pudessem vir atreladas nesse tempo e alguém segurasse com a mão em concha o pedaço de bolo. Ilusão. Sempre a ilusão.
            Arrumara a garrafa de sumo no frigorifico, juntamente com o resto do bolo. Os talheres no lavatório para serem lavados numa outra altura. Desligara a luz, mesmo que para ele sempre estivera escuro. Fizera tudo sem pensar muito nas coisas e terminou no sofá.
            Desde sempre que neste preciso dia escrevia nostalgia com letras demasiado grandes, de forma a trazer tudo de volta a este dia. Como quando aos 8 anos teve a sua primeira festa de anos, com colegas de escola, com meninas de lacinho e rapazes de fisga. Como quando aos 15 anos num jantar de anos com a turma inteira da escola, quis ter ali à mesa as meninas de laço e os rapazes de fisga dos 8 anos. Quando aos 20 anos, num mato alentejano, entre amigos da eternidade, quis ter consigo as meninas de laço, os rapazes de fisga e a turma inteira da escola. Foi sempre assim. Neste dia queria sempre todos os que não o acompanharam. Uma dor terrível, um desconfiar estranho de um qualquer plano do passado contra si.
            De costas endireitadas pelo sofá, ouvia música no silencio escurecido da sala. E informes, alguns ecos de tempo. A voz da sua mãe: filho, não te esqueças que o bolo é a certeza que estaremos sempre aqui. A mãe que lhe ensinara as saudades de partir sem poder voltar, as saudades de abraços que nunca souberam dar, as saudades do envelhecimento, as saudades de cuidar de doenças, as saudades de combater a doença, as saudades até da morte que a levara. As saudades da mãe. E os ecos de tempo a não esconderem a voz da irmã: mano, morde a vela depois de pedires um desejo, se ele for verdadeiro, acontece. A irmã que escondia os namorados, a falta da irmã a fumar cigarros e a ser mais adulta que os caroços do peito ausentes, a falta das leituras clandestinas do diário secreto da irmã, a falta imensa dos cabelos castanhos da irmã no casamento debaixo de uma felicidade imensurável, a falta infinda da irmã com as filhas ao colo, a ser mãe, a aprender a ser mãe. As saudades da irmã.
            Sentado no sofá, com os braços cruzados, todo dentro da sua melancolia, a saber que a solidão se vai construindo no abandono das pessoas. O Euclides sabe que se adormecer será menos sozinho. Lá, nesse lugar, encontrará o contágio dos dias como na infância. Mas neste dia os sonhos demoram sempre mais. Como se neste dia a paragem dos sonhos fosse uma espera sem relógio, sem se saber a quantidade de tempo que se espera. O Euclides quer ser um sonho e poder calar os ecos, encontrar-se com eles, abraçar os ecos e divagar-se suavemente pelas encostas, onde estarão as pessoas que importam, as que sempre importaram.

Comentários

  1. Impecável... para variar...
    Um texto muito forte!
    A intensidade está lá em cada palavra...

    Destaco esta frase que adorei:
    "Eram dois irmãos que existiam desde o mesmo ponto porque os irmãos nascem longe no tempo, mas morrem no mesmo dia."

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  2. Adorei!!! Tens uma escrita fantástica...

    Sou parecida com a irmã do Euclides, mas para além de pedir para morder as velas depois de pedido o desejo, para o ritual ficar completo, pediria para ser feito debaixo da mesa e dar um grito :))

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  3. Adorei!!!

    Revi-me na irmã do Euclides, mas para além de pedir para morder a vela depois do desejo ser pedido, para o ritual ser completo, o pedido teria de ser feito debaixo da mesa, complementado com um grito :))

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