A feira do livro





Chegámos muito devagar pela calçada íngreme. Pouco antes, estacionava mal o carro, com a sorte de quem sabe que existe sempre um espaço que alguém se esqueceu. Depois de trancadas as portas, a conversa rápida sobre o começo dos livros.
            Era a feira do livro. O lugar que jurávamos um ao outro que haveria de ser a nossa casa. Uma promessa que poderia ser cumprida naqueles poucos dias. Uma feira completa de dois traços compridos. Duas filas longas que haveríamos de descer e subir muitas vezes porque no meio dos livros nascem asas nos pés dos caminhantes.
            Não tínhamos preferências ao escolher as bancas. Passeávamos ao acaso e parávamos em tudo o que cheirava a antigo. Como quando falámos com o velho alfarrabista que quase abandonado, de poemas de algibeira nos lábios, a esgrimir solene, quase triste, palavras de um outro tempo em que as coisas talvez mais bonitas. O alfarrabista de nome bíblico. Josué. Apresentou-se quando descobrimos, entre outros tantos, um Crime e Castigo do tempo do escritor, traduzido de línguas para línguas, por caminhos que a própria tradução perdera, até chegar ao português que não o de hoje. Um livro que valia a pena, porém, menos a pena que Josué, o alfarrabista de poemas de algibeira nos lábios.
           
            - Se me roubassem o tempo, haveria de ser contente porque tão pouco precisaria de mim.

            Seria impensável não ficar a esperar por mais frases de Josué. Uma tarde não bastaria para escrever uma antologia poética. Eram poemas puros, como já não se fazem, mesmo que para nós, naquela altura ainda restasse a dúvida da autoria dos poemas. Podia ter decorado nas viagens pelo mundo e apenas traduzir. E agora, na feira do livro, desbaratar aos que queriam ouvir. Mas essa era uma dúvida que rapidamente deixámos para trás. Josué era um poeta e era tudo dele. Os poetas têm uma condição natural para esquecer. O que escrevem nunca é o que dizem. E Josué nunca se recordava do que acabara de dizer. Como se ao partilhar pequenas frases, pudesse caminhar para o lado dos comuns, dos que não precisam de palavras.

            - Havia um jornal que lia todos os dias. Repetidamente. O mesmo jornal, a mesma data e a mesma impressão. Sentava-me na cadeira de plástico e lia o jornal do dia dezasseis de Agosto de mil novecentos e oitenta. Todas as manhãs, de perna cruzada, depois de um cigarro e de um café ligeiramente alcoolizado. Ia abrindo o jornal, mesmo sabendo que era o mesmo do dia anterior e de todos os dias que vinham e que passavam. Porém, nunca chegava à última página. Uma qualquer dormência, sonolência, qualquer coisa assim, não me deixava virar a última página. E todos os dias tentava. E todos os dias adormecia antes de chegar ao fim. Até que uma tarde, quando nada havia para fazer senão voltar a sentar-me na cadeira de plástico, acrescentei qualquer coisa dentro de mim que consegui virar a última página. Hesitei um pouco e quando a folha se virou, quase sozinha, encontrei a noticia mais triste do mundo. A letras grossas, do tamanho certo para que me pudesse assustar, anunciava a minha morte. O poeta Josué, falecido naquele dia de Agosto. Fechei depois o jornal e continuei a viver.

            Ficámos calados a ouvir uma de muitas das histórias, poemas, frases, ou simplesmente barulhos do alfarrabista Josué.
            Mas havia mais a ver na feira do livro e deixámos o Josué para outras pessoas que ansiavam por o ouvir.
            Sabíamos os autores que estariam presentes. O amor que nos unia aos autores e aos seus livros era interminável. As nossas mãos foram-se sempre encontrando nas invenções de Mia Couto, nas revoluções de Pepetela, nas lembranças juvenis de Ondjaki e nos confrontos históricos de Agualusa. E alguns deles estariam sentados, desordenadamente, na pilha de pessoas que encheriam o espaço menos literário da feira do livro. Quase um paradoxo, quando pensávamos que alguns dos melhores escritores de veias africanas estariam confundidos com a multidão que se encontrava nos ombros e no peso de corpos sobre os pés. Gente a mais num espaço demasiado breve.
            Preferimos não visitar esses senhores da literatura e ainda que de desgosto, morreríamos mais pobres por não olharmos o rosto de Mia Couto de barba envelhecida mas com tantas palavras ainda por escrever.
            Fomos ao encontro de uma banca mais discreta, na espera de encontrar a sensibilidade aperfeiçoada de Valter Hugo Mãe. Falhámos pouco. Ele havia estado por ali, na calma que sempre o acompanha, mesmo na capa dos livros, mesmo nas entrevistas, mesmo nos intervalos dos livros e da música. Perdemo-lo por pouco mas por uma causa tão nobre quanto a de o ouvir. Desencontrados com o escritor das luzes feitas ingenuidade, fomos direitos a um senhor chamado Afonso Cruz.
            Vimo-lo sentado, meio sozinho, meio acompanhado, de barba comprida e cinzenta. À sua volta, uma imensidão de arte. Um caminho feito de desenhos temporários na permanência mas eternos na compreensão. Um lugar feito por ele, escritor, pintor, músico, artista. Tudo em seu redor tinha a marca da sua memória. No centro de tudo estava ele, Afonso Cruz.
            De perto, sem nos fazermos notar, pensámos a entrevista e fomos de encontro ao senhor de quem discutíamos que pudesse produzir vinho na sua escondida habitação. Soubemos depois que era vinho.

            - Boa tarde senhor Afonso Cruz. Sabemos da sua obra. No entanto, sempre nos fugiram os seus livros. Porque eu sou cristã e nunca acreditei que Jesus Cristo pudesse gostar de cerveja. O meu namorado porque tem medo que o senhor escreva melhor do que ele. Diz que tem medo do suicídio dos escritores que ainda não o são. Que o medo de invejar as suas palavras é diferente de ter medo de morrer.

            O escritor, pintor, músico, artista, Afonso Cruz, pasmado pela investida, a sobrarem-lhe momentos melhores do que explicar que escritores são todos aqueles que vivem nas palavras e que na literatura tudo é possível, até brincar com o divino.

- Senhor Afonso Cruz, o nosso pedido é o simples assinar deste livro. Livro que nos quer roubar a vida, por ciúme de a perdermos para o sonho de chegarmos a outro mundo que não este. Que nos é impedido de escrever o que nos é de direito. Porque se a oportunidade de viver na fantasia de um livro infantil, não hesitaríamos, não voltaríamos atrás. Mesmo sabendo que a nossa imaginação é como um livro que se abre pela capa e que não se entende o índice. Por isso, senhor Afonso Cruz, como fazer para que a frustração não se levante do abismo para nos assombrar?

Mais uma vez o escritor, pintor, musica, artista, Afonso Cruz, apanhado na mais recôndita surpresa, deixou-se no silêncio de algumas palavras. Respondendo quase sem querer.

- Estaríamos aqui horas a decifrar tanta desordem. Marcaremos um dia para que nos possamos compreender. Por agora tenho de terminar este jornal que teimo em não conseguir terminar. Voltem amanhã que cá estarei ao final da tarde. Tragam um crucifixo, uma cerveja e um caderno. Logo haveremos de saber o que fazer com a religião, o álcool e as palavras.

Quando descemos a feira para o seu início ou fim, nas diferentes perspectivas, continuámos de mãos oferecidas um ao outro. Com mais dúvidas que nunca e com uma única certeza, a de que haverá sempre lugar para um pouco mais de literatura.

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