Como nada fica no antigamente




            A festa não era a de antigamente. Anos passados na calvície e a festa tão transformada que as diferenças se perdiam na contagem. Rostos diferentes e até as indumentárias a destoarem daquele tempo em que os anos passavam mais devagar. Pessoas e classes misturadas, como se Marx e Engels pudessem ser ordinários na previsão.
            Chamava pelo nome de Octávio. Mais conhecido por Octávio “Cardinas”, alusão fácil ao casamento quase religioso com o vinho vindo de qualquer parte. O vinho que desde cedo o empurrou para uma vida festiva mas não boémia, que isso soava a palavra de ricos e sempre se assumira gente pequena e sem riquezas. Rapaz feito homem velho, no mesmo bairro de sempre e de agora. Aprendera a falar nas esquinas de traficantes de aguardente, ao mesmo tempo que aprendia o cálculo mental e pequenas operações matemáticas com as vendedoras de doces caseiros: bolachas medíocres, chupas caramelizados que roubavam dentes a miúdos e graúdos.
            Octávio fora uma criança sem muito para contar, para além dos roubos de fruta em jardins alheios, dos confrontos quase heróicos em que os punhos cerrados no rosto de outros meninos, dos cigarros mal fumados porque enrolados em folhas de caderno escolar. Para além de coisas passageiras, nada de relevante a contar da sua infância. Esquecendo, ou pondo de parte, a demonstração de ternura de seu pai, quase constante, materializada nas estaladas de meia-noite e fios de candeeiro descarnados na pele das costas. De tanto carinho sobrou aprendizagem. Nos fios descarnados, descobriu o cobre, o mesmo que deu valor quando soube que no ferro velho o cobre era vendido ao quilo. Nessa descoberta ganhou independência e dinheiro a mais. Chegava-lhe para o pão com manteiga e outras extravagâncias.
            Durante a criancice teve mordomias de sultão. Gastou tudo quando descobriu que a pila tinha um propósito maior que a vida. As mulheres começaram velhas e muito prostitutas. Mulheres maduras, gordas, outras peludas de tufos despenteados e de orgasmos há muito esquecidos. Tudo serviu para que Octávio se desprendesse da santíssima virgindade. Era um foder para não se apaixonar. Mas ele perdia-se sempre pela última. Tanto que repetia sempre o corpo duas a três semanas depois. Regressando meses à solitária vida da procura. Na procura de mulheres a sério como ele as acarinhava. Dois dentes a menos a quem as chamasse de outra coisa que não carinho. Assim descobriu sobre o amor como o bem mais repentino do Homem.
            De todas as épocas, enquanto se fazia homem, nada o alegrava mais do que os Santos Populares. Festa de coisas simples, que juntava a gente pobre com a mais pobre. As sardinhas a nadarem de olhos fechados nas paredes do bairro e a gente carinhosa com a falta de mar. Era a época do ano em que Octávio dançava descalço. Pedia licença aos pais e nas mãos das meninas esculpidas a carvão fazia convites lascivos que umas vezes eram aceites, outras, resmungados com estaladas de fazer corar. Octávio como marinheiro em alto mar, feliz entre tanta folia e boa disposição. Garantia de bebidas intervaladas a carapaus e outras iguarias que da calçada cresciam.
            Quando se iniciavam os preparativos, nas ruas, onde tudo acontecia, o rio de gente a chegar em catadupa e para os receber o Octávio que não pertencia a bairros ou a alguma nação. Octávio era um país inteiro de cultura, costumes, religiões. No seu corpo endinheirado pelo cobre era como a atracão turística de uma zona de Lisboa que valia menos que a pulseira futurista que trazia sempre consigo. Octávio era Portugal.
            Habituou-se a ter esquemas de dança para todos os anos. Começando timidamente por movimentos curtos de direita, esquerda. Que não demorou a evoluir para trocadilhos de pés, qual sapateado, a serpentear em cálculos metódicos pela pista de dança improvisada dos Santos Populares.
            As esquinas cantavam baixinho sempre que se aproximava. Mas os pés emblemáticos do bairro pediam a aumento de decibéis. E como que automaticamente, como uma ordem da natureza, o volume aumentava e a gente sabia que de lá vinha o Octávio.

            - Essa magia de pés hoje traz algo de novo Octávio?

E o Octávio, já cardinas, a torcer o nariz de falsa modéstia que não enganava nem a si próprio. Era ele o bairro inteiro.
Houve anos em que as festas acabavam mal. Na altura em que a politica trazia conflitos juvenis, desses em que a direita não compreende a esquerda e as classes explodem de raiva. A luta de classes portanto. Uma guerra que Octávio aprendeu a não discutir. Se era rico, era para abater. Se era pobre, era para acolher. A luta de classes que entrava pelos Santos e terminava sempre em pancadaria da grossa.
Por essa razão, era impossível encontrar na festa os desordeiros dos burgueses. Foi assim anos a fio. O Octávio fazia por isso com punhos e pontapés. A teoria de que os pobres não são bem vindos nas festas tinha de ser válida para o inverso e aí, nesse contracto bairrista, Octávio era radical, orgulhoso e cumpridor.
Com o tempo as coisas foram mudando lá no bairro e a festa dos pobres passou a festa dos ricos entre pobres. As ruas começaram a encher-se cada vez mais. Mais sardinhas a voarem de olhos fechados pelas paredes. Grelhas encostadas aos muros, menos espaço para se dançar e o Octávio menos artista.
As mudanças são sempre terríveis para os artistas. São estes que ao tentarem acompanhar as mudanças, deixam para trás o talento natural e se perdem no que foram brilhantes, como uma forma de repetir o que passou e não volta.
O génio nunca é repetível.
Tempo passou desde o antigamente, em que o Octávio malabarista de baile, a encantar novas e velhas, gordas e magras, mulheres e meninas. Agora, na mesma rua, na mesma festa, era apenas um entre tantos que viviam da glória de outros anos dourados.

Agora, décadas volvidas desde a magia dos dez e dos vinte anos, o outrora grande Octávio, dançava a um ritmo diferente dos outros. Ao som do mesmo acordeão, misturado com aquele barulho vindo dos irmãos brasileiros, era um ver se te havias para chegar a um consenso de movimentos.
Na pista de dança que se formava na rua, nos passeios, o Octávio com a postura de quem se esqueceu de morrer, a encontrar rostos de nojo que se afastavam antes do cheiro. Como se entre Homens pudesse haver uma diferença tão grande de cheiros. Como se entre Homens não pudesse haver uma igualdade.

- Só gostava de ter com quem dançar. - A voz do Octávio demasiado triste para a cidade surda.

As mulheres de perfumes intensos a sufocarem. A alma a separar-se do corpo porque um homem moribundo a fazer-se de fácil ao som do acordeão. E no meio de tanta confusão, o imperceptível suicídio de um homem que apenas queria voltar atrás, para um outro tempo em que fosse possível tornar-se melhor.
O tempo não é sempre generoso. Foi a frase que ouviu vezes sem conta na voz da prostituta do prédio azul. O tempo não é sempre generoso. Uma frase fulminante que agora lhe parecia adequada. Quase filosofia de casa de banho a parecer literatura. O tempo não é sempre generoso.
E a verdade é que o tempo o enganou. As promessas de que o sucesso permanecia mesmo nos erros do álcool, mesmo na amplitude de uma vida corroída por ódios desmedidos e pancadarias rudes. Foi um tremendo engano do tempo e o Octávio percebia agora.

- Eu só gostava que elas ainda me ouvissem. Mas elas fogem. Eu que tenho a melhor camisa e que gastei o perfume inteiro. Explicas-me? Explicas-me?

O outro que também não o queria ouvir, a sorrir de pena, a dizer que sim mas de pena, a responder com os olhos longe, cheio de pena.
A noite foi-se afastando devagar. Com os resistentes a pedirem o ultimo copo e a fugirem em gargalhadas de quem sabe que a festa dura uma noite e outra ainda. As pessoas que não eram ricas nem pobres, a desligarem os interruptores e a caminharem até casa na despedida de mais um ano de manjericos e vinhos vários. A rua a deixar de ser uma festa de todos e a ficar abandonada, sozinha. Ainda a juventude a esticar a madrugada e as velhas, cheias de barulho na venta, a dizerem adeus e até para o ano.
Findava mais uma festa anual de Santos Populares.

Uma semana tinha passado desde que o cheiro do vinho entranhado nas paredes. No café, onde as noticias chegavam mais cedo, os jornalistas vagabundos trocavam impressões sobre o dia de amanhã. Falavam dos copos cada vez mais curtos, das garrafas de rótulos enganadores, das boites que fechavam e das que abriam, do encanto de Lisboa e do desencanto pela juventude cada vez mais perdida.

- Sabes da última? Do “Cardinas”? Diz-se que se enforcou à porta da antiga casa de meninas na última noite da festa. Santo urso do rapaz que ainda teve a destreza de cravar no peito uma frase que não me lembro agora qual, qualquer coisa sobre o tempo ser generoso. Sacana do rapaz que tinha a mania que não haveria de envelhecer. Cabrão do homem que sabia que a alma haveria de sair do corpo e ficar ali mesmo, na casa das meninas. 

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