De quando partes e eu envelheço





           Cada vez que voltas a partir, eu envelheço mais depressa. Vou ficando mais careca, a parecer os senhores de idade avançada a quem lhes é retirado o favor de serem bonitos. Os meus joelhos a estalarem em gritos ensurdecedores, muito longe da ribalta da juventude em campos de futebol montados como feiras na rua.
            Sempre que partes, a minha cadência vital vai sendo mais recta. Mal respiro. Envelheço delicadamente nas noites em que os aviões sobrevoam o céu, de luzes acesas, como se também lá, no céu, houvesse trânsito e os faróis importantes. Nessas noites imagino que estás à janela do avião, a olhar para esta terra que sublinhou o teu nome na história daqueles que nunca te esquecem. Olhas da janela embaciada e descobres os prédios onde moram as tuas histórias. Imagino que sorris em italiano.

(tu que sei, bem sei, que já sonhas na tua língua estrangeira.)

Meu amigo da infância. Desce desse avião e toma o teu lugar à mesa. Hoje é de noite e amanhã não seremos capazes de relembrar as memórias ontem intocáveis. É mais noite que todas as outras e eu sinto a tua falta. É de noite no meu quarto e as divisões mostram-me que a noite termina daqui a algumas horas. E eu tenho a certeza que quando o dia nascer tu estarás sentado na tua secretária de trabalho a fingir que vês o tempo passar depressa, enquanto ouves músicas que a tua criança interior te ensinou a ouvir.

(por isso, que passe o mundo a ser sempre noite.)

            Que rica noticia esta de estar a ficar velho com os trapos. Eu que lembro tão bem de quando éramos imberbes e dizia-mos:

- Hei-de ser um velho feliz.

Não há orgulho na velhice amigo. Sentimo-nos velhos antes dos quarenta porque no outro dia tínhamos quinze. Somos antigos aos trinta e dois anos na medida que fraquejamos ao lembrar os dezassete anos sem responsabilidade científica. E foste tu que me ensinaste isso. Porque vou repetir muitas vezes que envelheço sempre que voltas a partir.

(não sejas teimoso e fica desta vez amigo. faz-se tarde e ainda vamos a tempo de rejuvenescer e trazer de volta as tardes de balões de água e de gelados ao sol e de passeios na floresta.)

            Faltam agora poucos segundos para a noite desaparecer. Os aviões estão a sobrevoar perto da minha casa. Há rostos desconhecidos a olhar das janelas embaciadas. Nenhum deles sorri como tu me lembras. Sei que nesses céus a língua portuguesa volta ao seu castelo de brincar. Há já acenos das janelas enquanto eu me pergunto se estão a partir ou a chegar.

(estão a chegar.)

Quando os aviões começam a aterrar, os meus olhos procuram o meu amigo. Os meus olhos correm desalmadamente todas as pistas, janelas, portas de desembarque, malas de viagem. Procuram numa maratona visual um sinal de que também chegaste.

(não vens com os islandeses. nem com as prostitutas polacas. nem no meio dos turcos de óculos escuros e engravatados. nem com os rapazes, turistas na certa, de camisas fora de estação e de chinelas de inverno. não vens entre ninguém e os aviões entretanto são estacionados.)

            Sinto-me velho. Há uma história cheia de longevidade que lisonjeou com rugas e dores nos ossos. Passaram-se décadas e os meus olhos estão iguais. Estou velho. O mundo está velho. As recordações cansaram-se e desapareceram nos restos do corpo que sobrevive só porque sim. Há uma velhice que foi outrora jovem. Os meus olhos estão iguais.
            Estou profundamente feliz porque a noite ameaça voltar. Mesmo doente sei que é de noite que o meu amigo regressa.
            No céu que escurece há um corpo mais forte que o vento que ajeita as asas nas costas e que sorri. Prepara-se para baixar voo e começa a planar bem junto do chão. As asas são de origem natural, como uma espécie de evolução do Homem para outra coisa que não sei descrever. Talvez envelhecer tenha muito a ver com o direito de voar.

(quantas vezes não falámos em voar.)

O meu amigo desce de mãos estendidas sobre o alcatrão. Os meus olhos, que nunca se deixaram envelhecer, mentem à natureza porque o meu amigo é agora um pássaro que aprendeu a voar com as coisas bonitas de outro país. Um pássaro que tem as mãos em forma de concha, a guardar a história maravilhosa daquilo que outrora nos aconteceu.

- Eu não voltarei a partir.

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