Não chegámos a crescer



não chegámos a crescer


havia um muro enorme que nos separava dos homens de barba e fivela de cinto na mão. uma separação quase ideológica, ramificada por ideias que se confundiam com a sociologia dos livros. os homens de barba e fivela de cinto na mão, extremamente rudes, a urgirem em ensaios de agressão. 

(homens que nunca foram crianças.)

o muro tapava o horizonte que procurávamos desde as janelas. não era de betão. não era de tijolo. era outra coisa. imaginação. era um muro que não acreditávamos poder subir. um muro em que as mãos escorregavam só de pensarem subir. por isso não sonhávamos sequer. ficávamos à beira do muro, a escrever com um giz cada vez mais pequeno. pedíamos os nomes às raparigas a branco. e elas respondiam com o pano negro. por vezes cuspiam nos restos de giz na parede. e o cuspo transformava as letras em desenhos de horror.

(as meninas cada vez menos delicadas. cada vez mais humanas.)

éramos rapazes de rua. o nosso reino sem trono porque no abraço dos rapazes há sempre pouca ordem. andávamos sempre desgovernados, na busca de aventuras rápidas. tínhamos pés de anjo, pequenos, estreitos. e o corpos, quase sempre franzinos, que se escapavam nos intervalos da chuva. assobiávamos para chamar quem quisesse vir. e éramos muitos. um bando de mãos dadas, na dúvida inconsciente de saber quem poderia terminar o verão.

não chegámos a crescer.

o primeiro era sempre o último. na ausência de classificação, nunca acontecem os vencedores. cabíamos todos na mesma estrada porque esta se alargava com os braços de quem chegava. uma estrada como um campo no espaço, num alargamento contínuo porque existem sempre mais rapazes que Homens. 

por vezes, quando as brincadeiras eram mais acompanhadas de silêncio, conseguíamos ouvir a fivela dos cintos do outro lado do muro. ouvíamos os gritos de quem era acertado. a dor que se espalhava pelo ar, trazida pelo vento. a dor que a fivela deixava na pele e a certeza de menos uma criança.

nesses dias, ficávamos sentado à beira do muro. com o giz pousado no chão. sem vontade de escrever palavras bonitas para as meninas. importados com a dor do outro lado. tristes por existirem homens de barba. tristes.

não era sempre. mas cada vez era mais constante. o som da fivela. os gritos. a dor. a repetirem-se na ventania. a assustarem o nosso lado do muro. 

um dia, a fivela calou-se. um outro barulho começou a aparecer. era mais violento. como o som de duas pedras em batalha. um som que lembrava copos partidos. e foi a partir desse dia que começámos a imaginar a queda do muro. olhávamos uns para os outros e dissemos:

- o muro vai cair. rapazes, o muro vai cair.

Não chegámos a crescer. Não chegámos a crescer. Não chegámos a crescer. Não chegámos a crescer.

o muro caiu e o mundo morreu. levou os corpos que outrora eram capazes de escapar nos intervalos da chuva. o mundo morreu e o verão nunca mais voltou.

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