O dia em que Piedade se esqueceu de chorar




a Piedade foi sempre rapariga de costumes antigos. usava galochas no inverno para se controlar nas poças esquecidas no chão. não pisava as riscas da calçadas. entrava de pés juntos em portas recentes porque não acreditava em igrejas. dizia obrigado aos estrangeiros. oferecia flores em agradecimentos aos familiares. estudava e trabalhava ao mesmo tempo que pensava em ser mãe.

a Piedade foi sempre rapariga de costumes antigos. esperava o namorado à porta do teatro, mesmo sabendo que só o corpo ele queria que estivesse à espera. oferecia-lhe um livro de poesias tradicionais, junto com a caixa de bolos de areia. mesmo sabendo que a ele não importavam os presentes e as sensibilidades ambíguas da poesia. usava um laço verde-mar a enfeitar a franja na gravidade, mesmo sabendo que no quarto escuro o laço fugiria para baixo da cama. 

a Piedade foi sempre rapariga de costumes antigos. dobrava o vestido antes do amor. entrava na cama só quando as luzes se apagavam. cheirava os lençóis antes dos outros cheiros. acariciava as mãos do namorado. fechava os olhos e deixava-se violar pela brutalidade engasgada do namorado. não fazia barulhos que pusessem em duvida o amor. secava os lábios sempre que lhe doíam as pernas de movimentos de bailarina. 

a Piedade foi sempre rapariga de costumes antigos. deixou crescer o cabelo branco para se mostrar velha. enrugou o rosto com o propósito de se reformar lentamente. entregou o passado aos filhos. foi-se esquecendo de fechar os olhos ao namorado quando a igreja e os sogros a sorrirem. foi-se esquecendo do nome do namorado e depois ficou sem marido. 

a Piedade foi sempre rapariga de costumes antigos. guardou o alcool todo do supermercado na arca. encheu o paraíso ao marido. viveu noites de alegria ao ver as mãos do marido esfregarem o rosto cada vez mais negro, mais só. foi enchendo a arca todos os dias para que os mortos pudessem agarrar os braços do marido.

a Piedade foi sempre rapariga de costumes antigos. fez um funeral bonito para o namorado. tratou dos papéis para que o marido não conseguisse voltar. beijou a testa do namorado dentro da caixa de madeira envernizada. deixou um livro de poesia tradicional no bolso do namorado. virou depois as costas a todos aqueles que choravam no funeral. virou as costas e deixou os costumes para trás. foi-se despindo pelo caminho. deixando cair o vestido ao longo do cemitério. dobrando-o devagar enquanto caminhava. foi fechando os olhos devagar enquanto procurava o laço verde-mar que enfeitava a franja na gravidade. 

abriu depois os olhos. estava à porta do teatro. lembrando-se do dia em que se esqueceu de chorar. à espera, ingenuamente, de que a vida pudesse acontecer novamente.

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