Ao Carlos Afonso




Vou esperando pelos primeiros cabelos brancos. O lento envelhecimento permite-me um passado que desaparece em pequenas peças que os espaço entre os dedos não sabem segurar. Estou cada vez com mais idade e poucas coisas que me surpreendam já. Há lugares que guardei no bolso. Há muita gente que não recordo o jeito. Há horas atrasadas que não sei o tempo. Poucas coisas me surpreendem.
Sento-me na bancada de um clube que me ensinou que o passado não tem importância quando o futuro diz que é sempre altura de terminar. Escolho um lugar central e sento-me para que de longe consiga ver o meu amigo no papel que já foi de outros tantos.

(vejo-te com clareza.)

Bem ao fundo do que outrora foi a minha casa, encontro o meu amigo Carlos Afonso. Nome que não assenta na sua delicadeza. Um nome que não gosto que seja o dele. Para mim sempre foi Tony. Com um traço estrangeiro, com um trago de sotaque diferente. Daqui de longe, onde não se consegue ver o mar, estou sentado para escrever a vida e feitos de um amigo de quem tenho saudades. Dessa saudade que só os mais pequenos sabem dizer. Como se pudesse sentir falta de um antigamente em que nem existíamos. A saudade dos mortos que ainda não morreram. A saudade dos que ainda não nasceram. Um sentir falta de qualquer coisa que não tem ainda forma nem acerto.
Enquanto penso o que escrever, vejo o meu amigo a entrar relva adentro, como se o corpo se pudesse confundir com o valor sintético das coisas. Um homem de vinte e um anos, corpo alto e solene, tão alto que os olhos confundidos com as nuvens de um céu liberto de outras cores que não o branco e o azul. O grande Carlos Afonso, vestido de encarnado, penteado pelas divergências da vida quando enganou a sorte dos pobres e enriqueceu com os cheiros de África e escolheu a escola dos pensadores muito além dos que pensam. 

(o Carlos Afonso que de braços abertos amortece de carinhos as almas dos africanos que desapareceram num passado de guerras)

Corre como se os campos de mercenários fossem agora a passividade dos amores desencontrados, do deslize dos homens de armas em punho transformado em rendição dos guerrilheiros. Imagino que se fossem um campo de batalha, o rapaz pudesse carregar pombas brancas debaixo dos braços, a empoleirar-se, com vontade de voar pelo continente que um dia nos salvará da desgraça do Homem. Naqueles metros todos de um campo de futebol, o Carlos Afonso, o meu amigo Tony, tem a musculatura dos escravos que sonharam com a libertação das terras que semearam com a candidez de quem sonha porque não quer fazer mais nada. 
Do lado da bancada, onde estou, tenho a perfeita noção que este mundo não merece um rapaz com o Carlos. Escrevo trabalho sem saber o que seja, porque a única coisa que sei é da corrida pela eternidade que o meu amigo tem de fazer pela sua condição, pela sua apoteose, pelo seu final triunfante. Na arte dos africanos há um limite que não existe nos números. Comprovo-o agora que tento escrever como forma de grito, com forma de revolta por não conseguir ver o nome do meu amigo nas estantes simbólicas dos grandes Homens.
Perco-me a escrever sobre coisas que não existem e não vejo o momento em que Deus desce à terra e da sua harpa toca uma melodia que faz as pombas brancas voarem dos braços do Carlos Afonso. Enquanto as lágrimas da harpa de Deus se estende pelo campo de futebol, eu estou entretido a escrever e não vejo o Carlos a voar para um limite que não é da gente comum. Atravessa o campo e a serra a uma velocidade que se intromete entre o movimento e o não-movimento. Cadenciado por sonhos que não tive nunca coragem de sonhar, o Carlos, ainda de braços abertos, a planar por um céu que julga o Homem pelo vento, a tocar com a mão nos confins do mundo e a deixar atrás de si um rasto de cores únicas, cores que não consigo dar um nome, cores que nunca havia visto.

(sei bem para onde voas camarada)

O bloco de notas foge-me das mãos porque até os objetos querem ter vida para serem iguais ao meu amigo. Na sua viagem para norte, no roteiro de um Deus maior que os outros, o Carlos, a ser infinito na sua própria mitologia. A ter um propósito que ultrapassa os livros que escreverei. Como um poema que não se fez ainda por não haver folhas suficientes. 

(segue as pombas brancas e deixa-as a bater as asas em ti.)

Os lugares agora estão ainda mais vazios. A bancada, que ainda há pouco me tinha sentado, de bloco de notas em branco, é uma lembrança já muito antiga. Parece que o fim do mundo veio fazer um acampamento e se deixou ficar por ali. A relva deixou de ser sintética, deu lugar a uma terra batida, de pedregulhos virgens. As balizas têm a tinta raspada, são uns ferros levantados do chão, lugar de descanso dos pássaros que procuram a primavera. O lugar que foi a minha casa é agora um antigamente cada vez mais antigo. Nem um sinal de pessoas, de crianças, de jogadores, de adeptos. Nada. Um campo que se despediu do futebol na hora exata em que o Carlos Afonso seguiu a harpa dos utópicos. 

(nada resta senão o tempo em que as crianças se riam dos treinadores de nomes esquisitos.)

E eu espero pelos primeiros cabelos brancos. A envelhecer devagarinho, apenas para que não morra antes de ver o Carlos Afonso, o meu amigo Tony, a marcar um golo que se prolongará pela infinidade da vida, bem nas barbas de Deus, para que possam todos aplaudir de pé um dos grandes Homens que conheci.

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