Pode um cego nunca ver




            Pergunta ao senhor de mamilos salientes por coisas que não consegue ver. Tem os olhos postos no polo castanho que lhe cobre o peito quase feminino pela doença que lhe estraga o corpo muito devagar durante as semanas que se lhe passam. É um corpo deformado que o jornalista não quer olhar, mas que insiste. Uma insistência de pena, porque o outro, o senhor que não tem como adivinhar, não tem corpo de pessoa, outra coisa qualquer menos humana, capaz de ser corrigida mas apenas no laboratório da morte.
            O jornalista compenetrado nas perguntas e no corpo disforme, vai escondendo a insatisfação das respostas meio vagas do senhor que não consegue ver as coisas direitas. As perguntas saem como flechas na arrogância, mecanizadas por um produto da insensibilidade.
- Do que tem mais saudades senhor Lopes?
Na sala de estar onde se encontram, durante a entrevista, são acarinhados pela mão antiga de uma senhora que se apresenta como eterna mulher, dócil esposa do senhor Lopes, extremamente cansada de viver, desse cansaço que já não se vende nas praças, um certo andar de pesar pela invisibilidade que encontra aos olhos do marido. O próprio nome camuflado pela injustiça da igreja que se lhe cravou no peito. Cândida. Dona Cândida para os netos que nunca apareceram para a visitar. Senhora Cândida para a viúva do terceiro direito, que lhe chegava sempre ao fim da tarde para a canja de galinha. Cândida, minha menina, para o senhor Lopes que a escolhera desde o tempo da catequese listada de pecados.
- Ele tem saudades de tanta coisa senhor. Não fala de outra coisa durante o dia. Anda de um lado para o outro sempre a falar de saudades. Como se não existisse mais nada depois da cegueira.
 Escondido atrás dos olhos embaciados, engasgado de vergonha, o senhor Lopes a resmungar entre dentes que para morrer que fosse de saudades, que tudo o mais pouco importava.
- Tenho saudades da cor, da luz sobre as cores. Dos olhos da minha mulher de manhã, quando as janelas se lhe abriam o rosto com a luz do dia, entrecortando as duas faces como se uma não fosse a repetição da outra, as imperfeiçoes corretas das sobrancelhas, os olhos quase acordados da minha mulher de manhã. Tenho saudades disso. Por quando me perguntaram, antes da operação, o que queria olhar por ultimo, antes de mergulhar na cegueira, escolhi o rosto da minha mulher. Podia ter sido a cara do anestesista, ou da enfermeira, mas não, quis que fosse o rosto da minha mulher. E juro que nesta mais que escuridão em que vivo, juro, que tenho ilusões de óptica em que vejo de novo o rosto da minha mulher. Não sei se é o meu cérebro a pregar-me partidas, a convencer-me de que devia estar internado num asilo, não sei, a única certeza que tenho é de que vejo o rosto da minha mulher. E caramba para tudo isto, mas ela é tão bonita.
            A senhora Cândida entristecida no canto da sala, como nos tempos de escola em que o lugar dos castigados ajoelhados no mesmo lugar. A senhora tão comovida como envaidecida, a amaciar a aliança, acreditada num dever cumprido como amiga e mulher, pela vida e pela morte.
            O jornalista envelheceu com as palavras do senhor Lopes. Parecia outra pessoa, não que fosse a idade a avançar, mais do que isso, um envelhecimento na inteligência, na comoção, na verdade das têmporas. Agora podia deixar o caderno de apontamentos no bolso, não haveria de precisar mais. Perder tempo a escrever seria um erro, quando a sinceridade baralha a lógica dos lugares comuns, não há tempo para palavras escritas. Importa a verdade dos olhos, mesmo os olhos de um cego que carrega o nevoeiro na alma.
            - Senhor Lopes, se eu lhe pedisse que utilizasse uma máquina para fotografar o que lhe bem entendesse, o que escolheria?
            Os ruídos mais pequenos no ouvido de um cego são imagens perfeitas, desenhadas com rigor de oficina, construídas com a legitimidade de uma imaginação concreta. Um cego aprende que todos os barulhos são a unidade de muitos sons pequenos retirados dos contextos todos do mundo, são parte formal da sensação de viver. O som e o cheiro são o lápis e a borracha de um cego que quer ver com as mãos.
            - Queria poder fotografar o mar, se possível sem pessoas no enquadramento. As pessoas fazem-me falta. E eu gosto muito de pessoas, sabe. Mas para tirar uma fotografia de cego, não queria pessoas misturadas com o mar.
            Nas paredes da sala, era agora possível ver pinturas do mar, entradas de praia, ondulações a empurrarem pequenas embarcações de gente ausente, esplanadas desertas no inverno. Por toda a sala, nas paredes e a fugir pela casa inteira, era possível ver retratos de falésias, redes de pesca a descaírem de barcos com nomes populares. Como se depois de ouvir o senhor Lopes, as paredes expusessem todo um passado de marinheiro até ali desconhecido, um Lobo do Mar que nunca saíra de terra assombrado pelo medo do mar, do azul bonito do mar.
            - Sabe, nunca tive coragem para o admitir, porque sou meio orgulhoso e por vezes falta-me a paciência para explicar o que sinto por dentro, mas desde que me fecharam os olhos naquela operação que percebi que tinha escolhido morrer. Naquela operação tiraram-me a vida sem eu perceber, na altura, que nunca me iriam devolver. Um homem nunca sabe o que vai perder quando lhe é retirada a visão. Perdemos muito. Perdemos tudo. Não existe um caminho para regressar ao que outrora era garantido. Passamos a vida a viver de noite quando tudo o que queríamos era acordar. O verão deixa de ser o que era porque para dentro, na escuridão da cegueira, é sempre inverno. Há uma tristeza inabalável que nos consome por não sabermos quando vamos adormecer. Não há tempo para descansar os olhos porque eles nunca se cansam de morrer.
           
            O jornalista olhou para o câmera e com um aceno breve deu por terminada a entrevista. Depois de limpar o sorriso enternecido com a mão direita, olhou para a Dona Cândida.
            - Foi preciso este pretexto de trabalho para vos conhecer finalmente. A distancia não pode desculpar tudo e eu devia ter vindo mais cedo. Desculpa avó. Desculpa avô.

            Retirou a máquina de fotografar da mala, enquadrou o senhor Lopes e a senhora Cândida, com o cuidado de não encontrar na lente nenhum registo de mar, e premiu o botão para encontrar o tempo presente, esse mesmo que nunca existiu. O tempo que fica e o que passa. Esse registo que não tem segundos. A marcação de um espaço em que alguém saberá ter existido.

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