Vinte e cinco anos, Adriano




            Quando o Citroen ZX entrou pela aldeia dentro, as pessoas mantiveram-se dentro das suas janelas. Um ou outro rosto a brincar às escondidas atrás das portas de casas secretamente pequenas, construídas por mãos que não estudaram arquitetura. Velhas mãos sem geometria, cravadas pela inteligência e rigor das oficinas de rua. Rostos ainda escondidos atrás das portas. Mulheres sem idade que se contem pelos dedos, envergonhadas pela erosão do tempo no desalinho das caras. Linhas de um tempo em que o sol e a sombra sabiamente certo.
            Por isso o Citroen ZX vagaroso, a pisar o terreno, em rodas de arrasto, a descer a ravina curta em ponto morto porque o motor demasiado barulhento para a tarde que se levantava.
            Com seis anos, nos assentos traseiros porque não tinha ainda carta de condução, eu desconhecia o tamanho de uma aldeia. Na escola as aldeias eram lugares onde as crianças não nasciam. Eu não podia adivinhar que a professora que me ensinava a ler e a escrever não sabia absolutamente nada sobre as aldeias. Logo eu que acreditava em tudo o que a professora Helena nos contava. Que não precisava da prova do livro de História de Portugal para saber que os rios eram tantos e que se podia neles mergulhar desde a infância à velhice. A professora Helena que jurava pelo deus nosso senhor de que as aldeias era onde viviam os velhos que esperavam por morrer, como se uma fila com direito a senha, como se espera para o pão no supermercado.
            Com seis anos, a olhar em volta para aldeia da minha avó e a decorar todas as esquinas reviradas para depois explicar aos meus colegas de sala de aula que a professora Helena nada sabia de aldeias, ou de velhos, ou de crianças, ou de rios.
            A primeira pessoa que nos chegou perto do carro era um senhor curvado. Para mim que tinha seis anos, o senhor curvado já deveria ter mais anos do que séculos. Lembro-me de olhar para os pés do senhor e de entender o que era ser pobre. Lembro-me de olhar para os meus próprios pés e de comparar a diferença das cores e da tecnologia futurista do velcro dos meus ténis, em contraste extra temporal com os sapatos esganados de fome do senhor curvado. Naquele exato momento eu era rico e o senhor era pobre.
            Quando abrimos as portas para sair do carro, estranhei a falta de palavras da minha avó com o senhor curvado. Acho que não chegaram a dizer nada um ao outro. Nem um sorriso a comprovar que as saudades tinham terminado. Não guardei nada do que possam ter dito e duvido que o tenham feito. Do que tenho a certeza porque a memoria não me enganaria durante muito tempo se fosse mentira, foi da minha avó dizer o nome do senhor curvado: Adriano.
            Nunca tinha conhecido ninguém com um nome igual. E o que não faltam por aí são nomes iguais. Mas daquela vez não me lembrou de ninguém. Ainda hoje, Adriano é sempre o senhor curvado. Ainda hoje, Adriano é o meu tio. O meu tio Adriano.
            Enquanto os meus avós ajudavam a descarregar as malas do carro, indaguei atrás do meu tio Adriano, a fingir-me de sombra, imitando os seus passos de quem não tem pressa de absolutamente nada. Caminhei atrás do meu tio como se fosse um cão. Chegava a confundir-me com o cão que caminhava ao seu lado, na única diferença de que eu tinha um nome e o cão tinha esse mesmo nome: cão. O meu tio Adriano chamava cão a todos os cães, gato a todos os gatos, raposa a todas as raposas e belo coelho a todos os coelhos.
            Ao abrir a porta de metal que dava entrada para a casa, o meu tio deixou escapar a primeira empatia comigo. Sem proferir qualquer palavra que se assemelhe a isso mesmo, uma palavra, disse-me sem o dizer que aquela era a sua casa, aquele o seu quarto, aquela a sua cozinha, aquele o seu fato branco de cerimonia e aquela a sua espingarda. Tudo numa única divisão. A espingarda pendurada num prego na parede. A cama o pequeno amontoado de cobertores e mantos de cores sem combinação. A cozinha apreendida pelas panelas pequenas e a chávena de café antiga e riscada de quando não existiam ainda chávenas. O fato branco de cerimonia só adivinhado pela total ausência de poder imaginar o senhor curvado vestido de forma tão formal.
            Fez-me uma visita guiada pela sua casa e não precisou de uma única palavra para descrever seja o que for. Certo é que ficou claro para mim que nunca mais iria esquecer aquele espaço e aquela pessoa.
            Depois de me mostrar a casa, empurrou-me delicadamente para a sua oficina. Apontou para o pedaço de madeira que estava entre os parafusos, os cartuchos vazios, as ferramentas, as bonecas de loiça, os paus de giz, os pregos, as garrafas, os ferros indecifráveis na origem, e todas as coisas que se possam imaginar de encontrar num ferro velho. Aquela era a oficina do meu tio e cedo percebi de que era ali que rezava, que era ali que lia para dentro a sua bíblia de engenhocas. Assim, apontou-me para o pedaço de madeira que percebi ser metade de uma espingarda. Não demorou a estender-me a outra metade da espingarda: um cano que encaixava na perfeição no bocado de madeira que servia de cabo.
            Aos seis anos o meu tio Adriano deu-me a primeira e única espingarda que alguma vez tive.
            Aos meus olhos de menino da cidade aquela espingarda era o símbolo máximo da rebeldia juvenil. Para mim, que me habituara somente a ver espingardas nos filmes do Trinitá, era levar para a vida real as brincadeiras que só tinha com os Playmobil. Eu tinha uma espingarda real nas mãos e mesmo sem saber o que fazer dela, tinha a plena consciência de que a partir daquele momento eu era um homem igual ao meu tio.
            Pendurei a espingarda à tira colo, depois do meu tio montar o sistema com um bocado de cabedal que encontrara ao vasculhar a tralha do seu santuário.
            Andei assim o resto do dia. A espingarda à tira colo e os meus dedos a percorrerem o cabedal de fio que me apertava o peito. Sentia-me gente grande e ia descobrindo aos poucos que aquela aldeia haveria de mudar a minha vida para sempre.
            Nesse dia adormeci com a espingarda ao lado da almofada. Talvez tenha sonhado que durante a noite um ladrão entraria pela porta adentro de modas a assaltar toda a gente e que, no meio do medo de todos os adultos, haveria de ser eu a saltar da cama, de cuecas e com os ossos a quererem sair-me da pele, e mostrar ao individuo de que voltasse para trás porque senão eu teria de utilizar a minha pontaria afinada para o pôr a sete milhas só com o meu dedo indicador no gatilho. Talvez tenha sonhado isso. E talvez até tenha acontecido mesmo, mas a memoria às vezes engana-me e inventa-me coisas que eu tenho vergonha de lembrar.
           
            Não sei bem as horas que eram. Recordo que seriam perto das seis horas da manhã quando o meu tio me acordou. Mais uma vez sem palavras pediu-me que viesse com ele à rua que tinha preparado tudo para irmos os dois à caça.
            Levantei-me de pronto. Vesti a mesma roupa do dia anterior e tive o cuidado de sair de casa com a espingarda à tira colo. Ao chegar à rua, já o meu tio tinha tudo pronto: um saco com pão e queijo, a sua espingarda e os seus fieis companheiros.
            Serviu-me leite com café e um pão com manteiga. Senti-me importante e crescido por estar a beber um galão muito escuro, diferente do que normalmente podia beber, um copo de leite com um trago de café só para bronzear o leite. Mas com o meu tio Adriano tudo era diferente, tudo era melhor. Ainda que estranha-se a falta de voz do meu tio, tudo era mais bonito. Para uma criança que sonha mais acordado do que a dormir, aquele lugar onde estava era a maior aventura de todas as que podiam acontecer.
            Caminhámos direitos à eira para que o meu tio me mostrasse o poço. Nunca tinha bebido água do poço e na minha imaginação um poço era uma piscina, só que mais funda e mais estreita. Mas a ideia de mergulhar foi desfeita quando o meu tio começou a puxar a água pela corda e me deixou fazer o ultimo esforço. Ao ver a chaleira cheia de água fresca a subir com a ajuda da corda e das nossas forças, estava decidido de que viveria ali até ao ultimo dia.
            O meu tio Adriano continuou mudo durante o resto da caminhada. Depois de bebermos água do poço ainda me sorriu devagarinho, como quem não quer deixar sair a juventude escondida por entre as rugas do tempo. Depois desse breve sorriso indicou o trilho a seguir e foram os cães que me disseram que íamos caçar coelhos e lebres.
            Fiquei aterrorizado com a ideia de assassinar aqueles animais. Não tinha qualquer instinto predador. Eu tinha seis anos e não sabia fazer mal a nada nem a ninguém. Por instantes quis abandonar a vida de caçador de espingarda em riste e dizer ao meu tio que aquela não era vida para mim. Talvez tivesse começado a chorar se não me tivesse lembrado de perguntar ao meu tio onde tínhamos guardadas as balas para as espingardas. Com toda aquela animação matinal nem me tinha apercebido de que não trazíamos munições e foi depois disso que olhei bem para a minha espingarda e vi que não era uma arma a sério. A minha espingarda não disparava tiros de verdade. Tinha o corpo de uma espingarda mas tudo o resto era por conta da minha imaginação. Eu era afinal um caçador não violento.
            Não me importei com a minha descoberta e continuei a caminhada em silencio pela serra. Durante toda a manhã não vi nem ouvi o meu tio disparar um único tiro. Por entre explicações de onde se escondiam as lebres e de que forma poderíamos nos encontrar o seu rasto, o meu tio experimentava-me a simular uma caça a sério. Ajudava-me a apontar para o sitio certo, a fechar o olho e a focar o olhar que me restava para acertar em cheio no alvo. Fizemos isto vezes a fio. Uma manhã inteira de explicações e simulações. Uma manhã que me recordo sempre que me lembro do meu tio.
            Quando regressámos a casa, já os meus avós tinham o almoço pronto, já a minha mãe se preocupava em saber como tinha sido o passeio com o meu tio, já o meu irmão tinha um ar enfadado no rosto  e a minha irmã com a maquina fotográfica na mão a pedir ao meu tio para se chegar mais perto para nos tirar uma fotografia. O meu tio foi-se chegando timidamente, com algum receio daquela coisa que a minha irmã tinha mão, com alguma desconfiança de que o mundo acabasse quando a minha irmã carregasse no botão vermelho.
            Quando ouvi o flash da maquina fotográfica nunca poderia imaginar que este momento seria uma das lembranças mais bonitas da minha vida.
            Hoje, que se passaram vinte e cinco anos desde o momento em que a minha irmã carregou no botão vermelho, não consigo entender como pude conhecer uma pessoa tão diferente do resto do mundo e nunca ter podido dizer-lhe que este tempo que passei com ele foi o começo da minha escrita, que todos os outros dias que vieram depois foram melhores porque a ideia seria ser igual a ele, que tenho vergonha de não me lembrar da voz do meu tio Adriano, que tenho saudades de beber a água do poço, que tenho tantas perguntas para lhe fazer e tenho pena de nunca as ter podido fazer.

            Hoje, que se passaram vinte e cinco anos desde o momento em que a minha irmã carregou no botão vermelho, queria dizer-te que o mundo ainda não acabou.

Comentários

  1. este itinerário de saudade ao teu tio Adriano, foi dos momentos de leitura mais belos que eu já li, pode nele sentir-se como nossa a tua saudade.
    e sim, também sinto como seria feliz ir envelhecendo, até ao fim, num lugar de paz como esse, muito embora acredite, sonhando acordada, que o mundo não acaba...!

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