à minha filha, quando aprender a ler

bem sei que te escrevo pouco,

[logo eu que jurei que depois de ti não haveria assunto mais bonito]

mas são tantas as coisas que tinha de escrever que acabo por nem me aventurar. talvez por vergonha que mais tarde leias de mim o fracasso que fui como escritor.
mas hoje, ao som do Pulso de André Barros e Rodrigo Leão, aventurei-me um bocadinho naquilo que espero que te orgulhes;

[não hoje, só no dia em que aprenderes o abecedário completo]

que te orgulhes do Homem que nasceu no dia em que os teus olhos me encontraram. nesse dia, nem imaginava, nunca poderia imaginar, que o meu nome não mais teria importância. o nome que a tua avó me tinha dado muitos anos antes, deixaria de me importar.

[pai. chama-me sempre pai, pois não quero outra coisa de ti, só que me chames pai.]

filha, o amor das coisas, das primeiras coisas, só começa quando um Homem olha para o filho que acabou de nascer e consegue classificar o universo como um ponto minúsculo no tempo que já viveu. até esse dia, é tudo mentira, é tudo fantasia.

[e eu sempre vivi mascarado pela fantasia]

filha, acredita em mim quando te digo que os teus olhos acendem o fogo de artificio que tenho dentro do peito. e o que mais queria era poder ver tudo como se fosse a primeira vez, ao mesmo tempo que tu, a sentir a novidade das primeiras coisas.

[e tudo isto porque me esqueci, porque me fui esquecendo da criança que fui]

mas isso tu já me ensinaste de novo. porque ao teu lado todas as coisas são bonitas e expansíveis. e o dia nunca termina.
sabes filha, tenho muita coisa para te contar, mas quero que as vás sabendo a pouco e pouco. não quero que tenhas pressa. eu nunca tive, e acho que cheguei bem ao dia de hoje.

[sou bom rapaz e tento ser uma pessoa simples]

nunca tive pressa de crescer ou de chegar a algum lado. mas sou ansioso, sempre fui. e a tua mãe sabe disso melhor que ninguém. sempre tive alguma ansiedade a correr-me nas pernas.

[tive pressa de ser pai porque não sabia o que isso era]

mas não quero perder o raciocínio: peço-te para não teres pressa porque se tiveres vais perder o melhor da viagem. perdes as pessoas pelo caminho, perdes a paisagem que te ensina que o mundo é demasiado grande para as tuas mãos mas não o suficiente para os teus olhos, perdes os livros, perdes os poemas e as palavras, e talvez até percas os sons, a música.

[nunca percas a literatura e a música]

filha, a natureza também não tem pressa. o tempo só existe porque nós fazemos questão de o contabilizar. não compres um relógio, nunca compres um relogio. acredita, nunca compres um relógio para que o tempo nunca passe por ti, para que ele nunca te veja e se esqueça de passar.


a natureza, filha, a natureza é capaz de tudo. até de acabar com tudo. portanto, trata-a bem. eu sei que já plantaste uma flor com o avô. ele fez questão de mostrar o presente a toda a família. por isso já fizeste o teu papel. não precisas de fazer mais nada pela natureza. para além de lhe ofereceres, sem ser todos os dias, um pouco de Max Richter. ela vai agradecer um dia.
não quero escrever muito mais. porque acho que vou ter vontade de o fazer mais tarde. quem sabe já amanhã. por isso vou despedir-me sem pressa. como devem ser as despedidas.
não tenhas pressa filha e nunca percas a literatura e a música.

[não tenho mais conselhos]

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