À minha filha, que fez bater novamente o meu coração.
Antes, eu pensava que nunca seria
pai. Foi um oficio que não consegui aprender. Julgava que a ordem natural das
coisas não se encarregava de unir as coisas inquebráveis.
[hoje sei que era tudo
imaginação]
Quando me recordo da minha
infância, não me consigo lembrar de uma voz masculina a dizer: filho. E agora
que penso nisso, sei que teria sido tão importante. Talvez tivesse feito melhor
o meu caminho até aqui. Ou talvez não. Os erros não se aprendem quando não
existem. E eu vi tantos erros na tua ausência que poderia escrever um
manuscrito por todos os anos que não apareceste.
[e se houve alturas em que
gostava que tivesses tocado à porta]
Quando me perguntavam por ti, eu
dizia que estavas atrasado. Que vinhas de muito longe, ainda que esse lugar
fosse no cimo da rua. Estavas sempre atrasado porque havia a ideia de que
estivesses mesmo a caminho. Para que os meus amigos da escola pudessem saber
que te preocupavas comigo, que eu era importante. Como eu acreditava que fosse
possível, mentia ao senhor da mercearia, ao prometer que tu virias para pagar o
fiado que inventei.
[aos dez anos os sonhos não têm
idade]
Na escola, as redações eram
sempre sobre um domingo em que passeávamos pela cidade de mota, daquelas
pequenas, em que eu poderia sentar-me perto do volante, a enganar as rodas,
como se um rapaz tão novo tivesse autorização para escolher a estrada por onde
seguir. E nas pequenas redações, eu assinava o teu nome de família com tanto
orgulho, que quase era possível seres tu a assinar na minha vez. Assinava e
dizia que tinhas sido tu a ensinar-me a escrever com letra bonita, direita,
impecável, sem falhas.
[logo eu, que nunca soube bem o
teu nome completo]
Os professores nunca souberam do
meu segredo. Afinal, era o teu nome que colocava na ficha de aluno, e até
escrevia a tua profissão. Nos primeiros anos eras cientista, mas com o passar
dos anos, passei a ser mais convicto, dizia que eras arquiteto de carros, que
os imaginavas, que os desenhavas num caderno de apontamentos e depois pedias
aos outros que materializassem a tua idealização. Os professores nunca
duvidaram, pelo menos nunca perguntaram, se calhar por pena de mim que vivia
num constante sonho interior.
[sempre tive vergonha de dizer
que eras apenas um bate-chapas]
Mas eu teria aceite que não
fosses o herói que sonhava. Não me importava que viesses com o fato de macaco
vestido, sujo de óleo de outras coisas que viviam na tua oficina. Não me
importava, porque tudo o que precisava era da tua voz a dizer: filho. E ela
nunca passou do silencio. Eras mudo porque a tua cabeça estava envenenada. Não
sabias dizer o amor porque vivias longe da pele.
[se me tivesses perguntado, eu
ter-te-ia dito que não há nada mais bonito, que a pele é o mais importante de
tudo]
Fizeste-me tanta falta que me
deixaste a viver com os medos todos dentro de mim. Eu que apenas queria que
viesses quando os meus sonhos eram maus e eu acordava inseguro porque a vida
demasiado grande para um menino tão pequeno de mãos e de coração. Eu que
adormecia a pensar por onde estarias tu naquela noite. Se estarias a pensar em
mim, o teu filho. Se naquela noite, aparecerias para dizer que os monstros do
escuro eram mentira, que a imaginação por vezes traz para a realidade aquilo
que não existe.
[eu tinha tanta falta de ti que
tinha medo dos outros]
Mas tu nunca apareceste de noite.
Nunca me salvaste quando chorava debaixo do cobertor, a pedir a um Deus que me
salvasse porque eu pensava que a religião era uma forma de fugir da morte.
Dizia baixinho, para que me salvasses, para me acalmares naquelas noites
tristes. Eu não pedia muito, nunca pedi muito. Era só preciso que me tivesses
dado um abraço, que eu haveria de nunca o esquecer.
[um abraço poderia parar o tempo,
como aquele relógio que me ofereceste sem eu te pedir, que parou no dia em que
o meu coração deixou de bater por ti]
Por onde andavas tu pai, que me
trouxeste ao mundo para te esqueceres que eu existia. Por onde andaste tu a
vida inteira quando eras preciso apenas num único lugar, perto de mim. Onde
devem estar sempre todos os pais, ao lado dos filhos, a saborear todos os
momentos como uma história que se escreve a muitas mãos. Onde paravas tu,
quando eu aprendi que o amor nem sempre é correspondido, que as mulheres são
máquinas complexas, que para vivermos cem anos temos de agarrar a felicidade em
cada esquina revirada. Onde andarias tu, quando poderias ter agarrado o tempo.
[mas agora é demasiado tarde,
para sempre]
Antes, eu pensava que não seria
pai. Mas hoje, sei que é a única coisa que alguma vez vou ser. Ao longo de tantos
anos, já fui tantas coisas. Fui um menino a viver por dentro dos sonhos, a
olhar constantemente para dentro, a fazer da tristeza um lugar abandonado.
Cheguei a tentar crescer, a acreditar que seria professor, mas depressa percebi
que era mais novo que os meus alunos, e que estes eram tempos difíceis para os
sonhadores. A ultima tentativa de ser adulto, deu-se com a frágil condição de
escritor, mas as palavras são tão difíceis, e talvez não tenha ainda encontrado
a obra prima que vive por baixo da pele. Por isso, desisti de crescer.
[sou agora, por fim, pai]
Hoje já não tenho pesadelos ou
sonhos maus. Sou pai de uma menina que teimará em ser o amor mais bonito de
todos. Sou pai, e devo-o a ti. Por me mostrares tudo aquilo que nunca serei.
Sou pai, e não há dia que não me lembre de como me fizeste tanta falta.
[tu, que faltaste a todos os ensaios]
Quando nasceu a minha filha,
lembrei-me de ti. Custa-me admitir, mas lembrei-me de ti. Como me lembro de
tantas vezes, ainda que nunca o possa admitir. Lembrei-me de como jurei durante
toda a minha vida que nunca seria igual a ti. Que estaria presente desde o
momento em que os olhos se abririam, até ao dia em que a minha ele deixar de
sentir. Sou pai. Não há outra coisa que possa igualar. E olha que eu já escrevi
dois livros.
[digo tantas vezes: filha]
Estou em todos os lugares em que
a minha filha respira. Olhos muito para os olhos da minha filha para que ela
saiba que eu nunca irei prometer aquilo que não posso cumprir. Dou-lhe a mão.
Explico-lhe a importância da pele. Mostro-lhe que as coisas mais bonitas vivem
dentro de nós, na nossa imaginação. Digo-lhe que nunca chegarei atrasado ao
futuro, que ela nunca terá de esperar por mim, porque estarei presente antes
mesmo do mundo girar. Lembro-lhe todos os dias que o amor volta sempre ao seu
lugar. Rio-me de tudo o que ela disser. Ouço-a, para que perceba que não há
nada mais importante para mim. Preocupar-me-ei sempre se a conquista da
felicidade está a ser construída.
[não quero que ela tenha medo do
escuro]
Sou um bom pai. E se me
perguntarem como aprendi a sê-lo, direi que fui aprendendo da pior maneira. Que
para ser o pai que sou hoje, perdi a infância inteira à procura do meu, que nem
a coragem teve de se atrasar, porque nunca me quis encontrar.
Comentários
Enviar um comentário