De como o Natal me salvou

quero explicar-te o natal, de como fui salvo na infância pelo dia vinte e quatro.
[não, para mim nunca foi o dia vinte e cinco]
a religião não coube inteira dentro de mim. muito cedo acreditei no amor profundo da minha mãe e por isso não soube logo quem era jesus. demorei até a entender a ligação histórica das coisas.
quando era novo, a minha mãe fazia das manhãs o dia de natal. quando nos de
ixava o pequeno almoço à beira da cama. sinal de que o amor se cria durante a madrugada e nos acorda pela manhã cheio.

[as manhãs sempre tiveram o cheiro da minha mãe]
era pela manhã que a minha mãe nos dizia: eu gosto é de fazer anos, porque o natal podemos celebrar todos os dias. e um dia eu não estarei por cá para apagar as velas. a minha mãe de uma ternura que já não se faz, sem fazer ideia do quê, mas a explicar-nos o sentido da vida, com uma crueldade repleta de verdade.
[um dia deixamos de apagar as velas, e aguentamos apenas na memória de quem nos lembra]
mas no dia vinte e quatro, pela manhã, a mesma conversa. a conversa do costume, outro olhar, o infinito olhar de quem sabe que o natal está a acontecer naquele momento. porque o natal tem um cheiro sem tempo, sem definição. a minha mãe a falar mais baixinho com o tabuleiro ainda nos braços: meninos, é natal e ainda não acenderam as luzes da árvore.
o meu irmão, muito aldrabão, dizia que não se importava, que nem acreditava no pai natal nem no pinheiro falso que montávamos todos os anos na sala. o meu irmão, cheio de modéstia, a enganar a minha mãe com as mãos sujas de cola e papel de embrulho colado nos pés, fruto das aventuras nocturnas de volta dos presentes escondidos, surpresas que já não eram porque a motricidade fina do meu irmão inventava formas de abrir e voltar a fechar, qual mágico das artes plásticas.

[tenho tantas saudades das mentiras do meu irmão no natal. sinto uma falta tremenda de acordar ao lado do meu irmão e de saber sempre quando ele me protegia da noite e das luzes que não sabia do quê.]
mas eu queria era explicar-te o natal. e contar-te como foi crescer numa casa onde não existia jesus. nem histórias de religião
[porque nunca foi preciso]
o amor não precisa de mais nada a não ser das pessoas, das mães, dos pais, dos irmãos. a religião ajuda o amor a florescer, mas não é obrigatória. por isso crescemos sem uma igreja à porta, mas acreditamos no natal. sempre acreditámos no natal. foi o que nos valeu muitas vezes, quando a tristeza teimava em acenar da janela. dessa e de outras vezes, valeu-nos o natal.
o dia vinte e quatro sempre foi a certeza de que estávamos a crescer e a viver. porque a cada ano que passava, lembrávamos o que passou. eram os anos a serem anos. a vontade de não crescermos muito, com medo de que o natal fosse apenas imaginação das crianças.

[mas ele existe, filha, ele existe]
esta altura é a mais bonita de todas, porque a tua avó ainda pode soprar mais velas. muito embora já não nos traga o pequeno almoço à cama, tenho a certeza que ainda acorda pela manhã com o mesmo olhar, aquele que nos traz a certeza de que o natal está a acontecer. tal e qual como era antigamente. com o meu irmão a fingir que não se importa. com a minha irmã a dizer-me que sou irritante e a dizer que fui encontrado no caixote do lixo e que não somos irmãos. a mentir-me só para me provar que o amor sobrevive a todas as mentiras. a jurarmos, os três, que no futuro, havemos de nos juntar todos, com os filhos, com a minha mãe, e continuaremos a lembrar que o dia vinte e quatro nos salvou de todas as vezes.
[aos meus irmãos, à minha mãe, por trinta e quatro dias de natal que nunca vou esquecer.]

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