Os meninos sem biografia



Quando se descia a Rua Bernardo Santareno, era certo que no horizonte surgiria, sem se fazer convidada, a escola numero três de Linda-a-Velha. O edifício de grandezas exageradas esperava-nos a todos: as crianças da freguesia. Dividido por dois blocos, os edifícios construídos de derivações anti marxistas, separava as crianças repetentes das que ainda não sabiam ler direito, dos meninos que demoravam a somar antes de subtrair, dos miúdos e miúdas que, iludidos pela aprendizagem a brincar da pré escola, não poderiam adivinhar que a luta de classes acontecia naquele lugar onde deveríamos ser todos iguais.

Eu não era diferente de nenhuma outra criança. Não sabia ler quando entrei para a escola primária. Não conhecia a numeração romana. Nem aprendera ainda que a régua de pau não se utilizava em cima da mesa, antes no ar, de encontro às mãos tímidas dos alunos que faziam da rebeldia o seu propósito. Não sabia nada e a felicidade morava em qualquer esquina revirada.

Quando a Rua Bernardo Santareno era ainda o inicio da construção de uma Linda-a-Velha de classe média, eu descia pelo passeio a espreitar os terraços retangulares onde as mães estendiam a roupa de manhã, com medo do Zé do Brinco que se dizia ser capaz de subir prédios inteiros para assaltar todas as casas na penumbra da noite. Nesses mitos construídos pelas vizinhas mais velhas, criei o meu primeiro pesadelo desperto. O sonho acordado de ser abordado pelo Zé do Brinco, alto, negro, de tranças à Bob Marley, de quem nunca consegui ouvir a voz, só o gemido e a respiração de quem já galgou muitos quilómetros. E juro que era um sonho acordado. Acontecia todas as manhãs de caminho para a escola. Demorava cinco minutos a chegar à escola, mas eram os minutos mais longos da minha infância. Cinco minutos a imaginar que o Zé do Brinco me levaria num saco de serapilheira para uma barraca de madeira e ali me deixaria, sozinho a pão e água meses a fio.
Tudo acalmava quando chegava ao portão da escola, onde sabia que iria encontrar os meus amigos. A partir daquele portão, o pesadelo acabava. Ao lado dos meus companheiros era impossível chegar o homem negro das tranças até aos joelhos. Para lá do portão, o Nita, o Zé Ilidio, o Tito, o Valter, o Jorge da Alice e o Leonildo, todos juntos eram muito mais fortes que qualquer bandido de saco de serapilheira. Eles eram os amigos que todas as crianças deveriam ter ao seu lado, pela bravura e astucia, imprescindíveis para se ter sucesso imediato naquela que era a primeira grande viagem pela vida: a ensino primário.

O Nita era Milton de nome, mas por alguma vontade dos pais e dos amigos do bairro virou Nita. Nunca ousei perguntar a razão. Mas só nos tornávamos próximos do Milton quando este desse a permissão oficial para que o pudéssemos chamar de Nita. No recreio era bravo. Ninguém fazia farinha com o Nita, porque magreza nunca seria sinónimo de fraqueza e fiz logo prova disso nos primeiros dias de escola, quando olhei para ele daquela forma que assustava os mais anjinhos do ATL, e surpreendentemente levei com um calduço de fazer chorar. Não dei a parte fraca, mas por dentro, toda a minha arrogância sofreu um abalo.


No meio destes homens feitos meninos pelo bilhete de identidade, havia o Zé Ilidio, que era mais velho que nós. Não me recordo se três ou quatro anos mais. Era mais velho e percebia-se no olhar. Havia nele aquele rancor e dor por uma vida já demasiado longa. O recreio era o seu território e não havia ninguém mais danado para a pancada que ele. Qualquer provocação era assinada a punho cerrado. O Zé gostava de porrada e não se fazia rogado a uma quezília. Se o chamavam de gordo, [que eu nunca chamei] lá vinha ele, pela ribanceira abaixo, a morder a língua e meio gordura meio musculo soltava a mão em gancho de encontro ao queixo do desgraçado.


O Tito era timorense. Eu não sabia o que era um timorense. Sabia que era escuro mas tinha cabelo liso. Isso deixava-me sempre a perguntar se teria alguma coisa a ver o facto de ser timorense. Mas eu sabia lá o que era um timorense. Para mim timorense era o mesmo que a Anabela ser gorda. A única coisa que eu tinha a certeza é que o Tito era um tipo às direitas. Sempre de mão no bolso, ele era um puto feliz. Vivia nas barracas do Balteiro. Tinha um baloiço pendurado na arvore à frente de casa e eu sonhava um dia ser adulto e poder ter o meu próprio jardim, a minha arvore e o meu baloiço pendurado. E essa ideia começou quando o Tito me levou para almoçar a casa dele. O Balteiro era um bairro de barracas, ou casas de madeira, construído no Jamor, perto daquele cheiro insuportável. Na minha memoria eram duas ou três casas de madeira, muitas famílias e lembrava-me sempre do filme sobre o cantor Ritchie Valens, o gajo do La Bamba. E explico melhor: O Tito era maluco por esse filme e quando lá fomos almoçar a casa dele, juro que me lembro de ouvir o Come On Let´s Go enquanto o vento empurrava uma miúda, que também era timorense, no baloiço. Resumindo, o Tito era aquele miúdo descontraído que só tirava a mão do bolso para abrir as portas, e mesmo assim, acho que a sorte o bafejava sempre, porque ele era um sacana sortudo que começava o dia a rir e terminava a rir ainda mais. Nunca consegui explicação para isso.


Mas o Valter também era incrível. Tinha metade do nosso tamanho, mas ensinou-se a maior lição da minha vida [há sempre alguém mais maluco que tu]. O Valter desde cedo ganhou a cognome de Maradona. Não era difícil. Estava predestinado antes de nascer. Era mais pequeno que os outros, jogava à bola que se fartava, com os dois pés [aqui era melhor que o original], e tinha, atenção, um cabelo aos caracóis à rasta parta que crescera pelos anos oitenta até ali, ao inicio dos anos noventa. Valter, o Maradona da escola numero três de Linda-a-Velha. Era um delírio, fora das aulas queria uma bola e adversários para ultrapassar. Dentro de quatro paredes, era o tipo mais trapalhão que conheci. Se a professora Helena pedisse para cortar à volta do circulo, já ele tinha cortado o circulo ao meio. Se era para escrever o nome no canto superior esquerdo da folha, já o menino tinha escrito no lado contrário. Nos ditados, era uma competição para saber quem acompanharia o Valter no ultimo lugar. Mas ninguém me tira da cabeça que ele fazia tudo isto de propósito. Era a forma de se mostrar diferente dos outros, rebelde perante a autoridade, como faria certamente o Maradona, o original.

De todos, o que me deixou sempre mais pensativo foi o Jorge da Alice [também não faço ideia o porquê do da Alice]. O Jorge já não tinha idade para estar entre nós. E já o comprovei nas fotografias que guardo desse tempo. Ele era mais alto que a professora Helena. Já vestia roupa de homem. Tinha um ar sábio, mesmo sabendo nós que já tinha chumbado mais vezes que os dedos de uma mão. Quando penso no Jorge, retiro uma calma que nunca mais encontrei. Era sereno no recreio, na sala, no pavilhão. Nada nele mostrava conflito. Vivia dentro de si mesmo, talvez confinado a esse espaço interior para não ter de olhar em volta e encontrar crianças. O Jorge da Alice ensinou-se a andar de bicicleta. Não me perguntem como. Sempre que me tento lembrar de como aprendi a andar de bicicleta, vejo o Jorge de um lado para o outro a dizer-me: é assim puto. É assim. Dás ao pedal. E vejo-o a descer a Rua Bernardo Santareno, cheio de solenidade, iluminado pela calma que sempre encontrei no seu olhar.

Mas chegamos ao Leonildo. Onde esta história deveria ter começado. Porque toda a minha infância, dos meus seis anos aos dez, devo-a a algumas pessoas, onde o incluo. Desde o primeiro dia de aulas, quando chegamos assustados, quase ao colo das mães. Desde esse dia, quando o encontrei, que sei que tem um coração demasiado bonito. O Leonildo que nunca mais foi esse nome. Foi perdendo letras pelo caminho, e ficou Nino, o lutador.
Quando conheci o Nino vi o Michael Jackson à minha frente. Cabelo comprido aos caracóis brilhantes e um sorriso de dançarino malandro. De tal maneira que mal cheguei a casa fui contar ao meu irmão que o Michael Jackson era da minha turma. Falei dele e das gémeas que iriam ser minhas namoradas, só tinha de escolher qual das duas.

O Nino tinha os mesmos gostos que eu. Era maluco pelo Van Damme e sabia fazer os truques todos do Frank Dux no Força Destruidora. Cada filme que saia era contado ao pormenor por ele e por mim. Cada um de nós a tentar mostrar quem sabia mais. O Nino tantas vezes me disse que sabia dar um duplo rotativo, que treinava em casa com o tio, que tinha um poster do Van Damme no quarto e que praticava aos fins de semana. E logo eu a dizer-lhe que népia. Eu é que sabia fazer o uppercut e ainda era capaz de fazer o pontapé dos três sítios, baixo, médio, alto. Tudo num único movimento. Mas o melhor era nunca demonstrarmos, não fossemos chamados à diretora por comportamentos de risco para os outros alunos. Eu sabia que ele era capaz. Ele sabia que eu era capaz. As nossas palavras bastavam.
Quando eu recebia um GI JOE novo, levava logo para a escola. O Nino tinha de o ver e comparar com os dele. Com os bonecos podíamos mostrar os truques de artes marciais todos sem incorrermos em violência gratuita.

O Nino não gostava de futebol e eu àquele tempo também não era apreciador. Nós gostávamos era de porrada, pancadaria invisível, mas à séria.

Por vezes, quando me lembro desses tempos, tenho a certeza que o homem que se contruiu dentro de mim começou nesses dias. Como naquele dia em que o Nino me convidou para ir com ele almoçar ao bairro, ao Alto de Santa Catarina. O lugar que todos temiam. Onde morava o crime, os fora da lei, os rebeldes sem causa, os outros.

Tinha crescido a ouvir dizer coisas estranhas sobre o Alto de Santa Catarina, ou simplesmente o Alto.

Nesse dia fui com o Nino. Subimos a Avenida Dom Pedro V direitinhos ao caminho solto que separava o Alto de Santa Catarina de Linda-a-Velha. A partir daquele ponto tudo podia acontecer. Era um mundo novo. E eu estava prestes a conhecer uma realidade que desconhecia até então.

Pelo caminho, o Nino dizia sempre: estás seguro, estás comigo ninguém te faz mal. O bairro é seguro. A malta conhece-se toda. Vais ver. Por onde passarmos vais ver que não é o que dizem. E aquela conversa fez-me esquecer a historia do Grupo dos Navalhada, que aterrorizava aqueles que nunca tinham visto um canivete além das series do Mccgyver. As palavras do Nino fizeram-me perder o medo. Até ao momento em que ao longe consegui avistar aquele que atormentava as minhas manhãs. Ao longe, no horizonte iluminado pelo sol que dera nome ao Bairro, vi o Zé do Brinco.
O medo que tinha perdido regressava agora devagar. Caminhava ao lado do meu amigo e ele não parecia nada preocupado com o Zé do Brinco. Continuava a falar das coisas bonitas que se passavam ali. De todos serem vizinhos, de todos terem pouco, mas que essa era uma igualdade. Ninguém tinha mais do que era preciso. As casas de tijolo descarnado, de aspeto abandonado, mas com quintais onde se plantavam coisas que depois se comiam. Cana de Açúcar que provei junto com o meu amigo Nino, pedida de emprestado à senhora que espreitava da janela e dizia: levem meninos, mas ao menos peçam, que pedir não é roubar. A vida no bairro a acontecer e o Nino a mostrar-me que somos todos iguais. Os ricos esquecem-se dos pobres, mas os pobres nunca se esquecem dos ricos. A comunidade do Alto de Santa Catarina a comover-me porque sítios assim só existiam nas novelas e nos livros. Ali respirava-se liberdade. Todos falavam ao outro como irmãos. E comprovei isso em primeira mão. Quando o Zé do Brinco passou por nós, já depois do medo, e cumprimento o meu amigo Nino, pousando o saco de plástico que carregava, chegando-se perto para acenar com a cabeça. O Nino retribuiu e desde esse dia nunca mais tive medo.

Nunca contei ao meu amigo deste momento. Mas acho que ele hoje iria compreender que quando somos miúdos partilhamos tudo, menos a vergonha e o medo.

Nesse dia, não me recordo de almoçar em casa do Nino. Acho que acabámos por ficar na rua perto de casa do nosso amigo Fernando Évora. A conversar. Acho que nem brincámos, ficámos mesmo a conversar. Talvez eles me tenham contado coisas importantes que já me esqueci mas que ficaram dentro de mim. Talvez o Nino tenha feito o duplo rotativo e falado do tio que também era capaz de ganhar um combate ao Van Damme. Acho que foi por aí que conversámos. Lembro-me desse dia. Lembro-me que fomos felizes nessa tarde quando o Nino nos mostrou que era capaz de fazer o Moonwalk e eu acreditei que ele era mesmo familiar do Michael Jackson, mesmo que os caracóis já tivessem sido cortados.
Essa tarde ficou guardada na minha memória e hoje lembrei-me dela. Como me lembrei de todos aqueles amigos que estão no passado. Do Nita, do Zé Elidio, do Tito, do Valter, do Jorge da Alice, e sobre tudo do Nino.

O que tenho mais bem guardo dentro de mim é a escola e do que isso representou para todos estes meus companheiros. O denominador comum era o insucesso escolar. Todos eles falharam na escola primária. E eu sei onde estão os culpados. Estão ao nosso lado. A morar nos mesmos prédios. Nas ruas. Nos jornais. Nos cargos políticos. Por todo o lado. Estes meus amigos foram abandonados pelo ensino primário porque a professora Helena era racista. A nossa professora não gostava de africanos, fossem eles Cabo Verdianos, Angolanos, Moçambicanos ou Guineenses. E tenho a certeza que também não gostava de Timorenses [que agora aprendi quem são].

Tenho saudades dos meus amigos. Da irreverencia do Nita, quando dizia à mãe que era doméstica na minha casa, que ia só dar um giro. Sinto falta do meu amigo Tito e do Balteiro, da menina timorense que balouçava ao som do Ritchie Valens. Da quietude principe do Jorge da Alice, a circular de bicicleta e a dizer-me que eu era capaz. Sinto uma falta imensa do Maradona a fazer pouco da professora Helena, porque ele era mais inteligente do que ela e mais ninguém reparou. Mas sobretudo, faz-me falta o meu amigo Nino, com quem aprendi a deixar de ter medo das pessoas. O Nino a quem a vida sorriu mais do que a muitos, que tenho a certeza que foi um lutador no limiar da vida, a estudar artes que o levassem ao cume de uma vida melhor. O meu amigo que será sempre o Leonildo, capaz de fazer um duplo rotativo e fazer deste mundo um lugar muito mais bonito.


A todos aqueles que nunca tiveram uma biografia.

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