Do futuro que devo à minha mãe

 

 

                Sempre que me recordo da minha infância são sete horas da manhã e a minha mãe vem acordar-me com o prato das torradas besuntadas com manteiga e uma chávena de chá preto com duas colheres de açúcar. Não acendo a luz do quarto, nem abre as janelas. Acorda-me devagar a dizer que o pequeno-almoço hoje é na cama. E o hoje prolongou-se pelo tempo até aos meus vinte e tal anos. Para mim e para o meu irmão, com quem partilhei o meu quarto de criança e adolescente. Sempre tivemos quatro anos de diferença, mas tínhamos direito às mesmas regalias. A minha mãe não fazia diferença, nunca fez. Ainda que o meu irmão pudesse ficar com o maior bocado de pão torrado, ou que lhe fosse permitido deitar-se mais tarde, para lá do final da novela do Roque Santeiro, mais tarde a Tieta. O meu irmão e a minha irmã, que nasceram gémeos falsos (o que quer que isso queira dizer). Ambos tinham essa liberdade que a mim só me foi concedida mais tarde. Tirando isso, a minha mãe nunca fez diferenças. O mesmo prato na mesa, a mesma sopa e sobremesa.

[mas aquela sopa de tomate era desnecessária]

                Sempre que regresso ao menino que fui, a minha mãe não tem idade e é a primeira a acordar. Não me lembro de a ver cansada.

[e o cansaço devia ser tremendo]

Quando nos levantávamos da cama, já o dia ia longo nas pernas da minha mãe. Das vinte e quatro horas que pareciam quarenta e oito, ela não desperdiçava um minuto sequer. A mim preparava-me a roupa, vestia-me e não se queixava quando eu fechava os olhos a dormir de pé, a desajudar com a camisola e com as calças. O certo é que em pouco tempo eu estava despachado e a caminho da escola. Nunca cheguei atrasado. A minha mãe nunca se atrasou em nenhum momento da minha vida.

                A razão de voltar sempre aquelas manhãs de torradas e chá prende-se com a ideia que tenho de que poderia resumir o tamanho da profundidade da minha mãe na repetição desse ato simbólico que sempre teve connosco, até ao último dia que vivemos juntos na mesma casa.

[a minha casa sempre foi o lugar onde está a minha mãe]

                Para mim, o amor da minha mãe nunca foi feito de abraços. Foi feito de outras coisas mais importantes. Eram conversas à mesa sobre um passado que existiu e que nos contava, ou as noites de sexta-feira de filmes alugados no clube de vídeo lá da rua, onde conhecíamos o dono por Bêbado.

[o tipo que não nos deixava alugar o Flash porque garantia que aquilo era demasiado violento para nós]

 Estar em família era conversar sobre sermos sinceros. Era sabermos que o tabaco nos fazia mal e que não deveríamos ser iguais aos outros. Era ver a Casa Cheia na RTP1 e preencher o jogo que saia na revista para ganharmos qualquer coisa. Era receber o Readest Digest em casa e olhar para aquilo sem saber quem teve a infeliz ideia de ser assinante daquilo. Estar em família era cabermos todos no sofá preto e verde e tirarmos fotografias instantâneas uns aos outros na ternura de quem sabe que aqueles momentos não vão durar para sempre. Era saber que quando começava o Vitinho falta um niquinho de nada para irmos dormir e que só ao sábado podíamos esticar a corda e não ter hora para ir deitar. Para mim e para os meus irmãos não havia nada mais importante do que abrir a TvGuia e recortar as capas dos filmes que iam passar na televisão essa semana e carregar no Rec na hora certa, mesmo que o filme fosse o Ultimo Tango em Paris e nós estivéssemos completamente alheados do vazio sentimental do Marlon Brando.

[tenho tantas saudades desses anos que tive frio durante todos os anos até ser pai]

Ainda hoje sei que entre o ano de mil novecentos e oitenta e nove e o ano de mil novecentos e noventa e três, fui tremendamente feliz. E hoje, adulto e pai de família, tento igualar aquilo que aconteceu nesse período de tempo.

Depois disso, os meus irmãos cresceram e começaram a ir para os cafés fumar cigarros às escondidas da minha mãe. E eu era demasiado pequeno para conseguir acompanhar. As noites começaram a ser mais escuras porque o meu irmão já não adormecia comigo. Trazia namoradas para casa e mandava-me para a sala.

- Puto, vai para a sala ver o filme do Van Damme!

E eu ia. Punha a cassete no vídeo e ficava para ali horas a ver o filme em repetição. O meu irmão não tardava em também esquecer as raparigas e juntava-se a mim. Dizia baixinho:

- Puto, achas que o meu caparro é parecido com o do Jean Claude?

[o meu sonho sempre foi ser o Frank Dux]

Também a minha irmã deixou de ser infantil após esses anos. Deixou para trás as camisolas da Amarras e deixou-se vencer pela ambição de ser adulta precoce. Abandonou o quarto, largando as bonecas e os posters dos New Kids On The Block e do Christian Slater e fez-se à estrada.

E no meio destas mudanças a minha mãe também envelheceu, não sem antes se apaixonar pela vida novamente, desta vez pela eternidade.

Não sei qual foi a última vez que abracei a minha mãe. Devemos ter-nos abraçado duas ou três vezes, sempre por razões pouco importantes. O mesmo acontece com os meus irmãos. Fazemos um quadrado perfeito mas sem precisar de nos tocarmos. Valem muito mais as palavras e aquilo que somos uns para os outros. Há uma distância invisível entre nós. Nunca precisámos de mostrar muito, respiramos dos mesmos lugares e o amor sabe encontrar o seu espaço.

Quando olho para a minha desde o presente, vejo que foi perdendo muita coisa pelo caminho. Mas nunca nos perdeu. Nunca deixou que o passado de mágoa fosse possível entre nós. Explicou-nos desde muito cedo que o nosso pai se foi embora, que os pais não foram bonitos, que fomos pobres mas que os sonhos não se compram, constroem-se. A minha mãe nunca precisou de ler livros para nos explicar do mundo. Conversava.

[todas as minhas decisões foram tomadas na sequencia de conversas que tive com a minha mãe]

Eu não sei que tipo de pobreza passou a minha mãe. Gostava que ela não tivesse histórias tristes para contar. Mas ainda que na infelicidade de tantas narrativas, nunca a vi desistir de nada. Ao lado da minha mãe todas as coisas foram sempre possíveis. Por isso, de todas as vezes penso para mim que devo o futuro à minha mãe.

Este futuro que estou a construir tem um começo. Aconteceu naquele dia em que escolheu ficar comigo e com os meus irmãos. Mesmo que para isso tivesse de desistir da própria vida, como o fez. Mesmo que para isso tivesse deixado para trás todos aqueles projetos que um dia teve em menina, de ser uma mulher de vanguarda, de conhecer o mundo além da pasmaceira, de beber café em Paris ou de dançar a noite inteira sem nunca acordar.

A poucos dias de se comemorar o dia da mãe, estamos em dois mil e vinte e um. Eu tenho trinta e sete anos. Os meus irmãos, gémeos falsos, têm quarenta e dois. E eu que gostava de ter conhecido a minha mãe mais jovem, a tempo de lhe prometer outras coisas melhores. De levá-la a passear por Paris para que nunca conhecesse o meu pai. Haveríamos de ir os quatro acampar para o Alentejo e conversar sobre as novelas que víamos juntos. Deixaríamos que ela pusesse os discos da Janis Joplin a tocar por baixo do céu estrelado, e juro que deixaria a minha mãe a dançar a noite inteira, como nas redações que escrevi em menino, a imaginar que viver não seria tão difícil e que os finais felizes não se escrevem, acontecem.

Comentários

Mensagens populares