A Mãe

            


Quando eu era pequeno a minha mãe ao deitar-me cantava-me sempre a mesma cantiga:

- Dói o dente, dói o dente, maukê, maukê!

Eu pedia-lhe sempre que repetisse. E de todas as vezes eu ria-me que nem um perdido. Não sei bem porquê, talvez a forma feliz como ela o dizia, talvez a felicidade que a minha mãe transparecia àquela hora da noite.

                Quando tento voltar ao dia mais longínquo que tenho memória, o meu limite é sempre uma dessas noites. Como se antes disso eu fosse demasiadamente criança para ter guardado o que quer que fosse.

                Numa dessas memórias vejo a minha mãe a ralhar comigo por ter cortado uma banana às rodelas e de deixá-las no lavatório juntamente com a casca, numa fúria infantil que deve ter crescido com alguma frustração ou desejo negado. Vejo-me nitidamente, a caminho da cama e os passos acelerados da minha mãe a informar que estava na hora da chatice. Nessa noite fui para a cama em jejum e sem a cantiga

[- Dói o dente, dói o dente, maukê, maukê!]

                Estou a chorar, sozinho, no escuro do meu quarto. O meu irmão mais velho, com quem partilhava o quarto, ainda deve estar na sala a ver o Roque Santeiro com a minha irmã. As lágrimas nesta idade têm sempre uma explicação simples. Desta vez não é diferente. Talvez eu não soubesse dizer à minha mãe que gostava muito dela, que pedia desculpa por me portar mal, desculpa pela desarrumação na cozinha. Mas ainda que não tivesse qualquer razão para a vitimização, a verdade é que neste noite não haveria cantiga e eu precisava dela para adormecer com a certeza de que o dia seguinte estaria tudo normal.

                Quando o meu irmão se foi deitar não devia ser muito tarde. Colocou os headphones e meteu-se dentro da sua música, os irmãos BROS a cantarem “when will i be famous”. Pouco depois de se virar para a parede, a minha mãe entrou no quarto para lhe puxar o cobertor para cima. Ao virar-se, veio até mim, que fingia dormir, e disse baixinho ao ouvido:

                - Dói o dente, dói o dente, maukê, maukê!

                A minha mãe sempre foi destes gestos invisíveis. Ao longo da vida demos poucos abraços. Mas em contrapartida, falávamos muito. Os assuntos do presente e do futuro eram muito presentes à mesa de jantar. Havia poucas proibições na educação da minha mãe. Um pouco de liberdade a mais e um bocado suficiente de responsabilidade que sempre foi inegociável. Foi assim que educou três filhos. Diferentes feitios e a mesma quantidade de amor.

                 Por vezes entristece-me ver que a minha mãe também envelhece. Mais do que os anos a passarem é a ideia de pensar que os tempos mais lúcidos já se foram. O tempo de vivermos todos na mesma casa é um espaço que não se repete. E isso é o que dói mais. A minha mãe já não me vai buscar à escola no carro comercial. De manhã, ao acordar, as torradas não aparecem feitas e o chá na temperatura certa não será certamente companhia. Viver com a minha mãe e com os meus irmãos é uma história que não acontecerá novamente. Crescemos. Cada um no seu lugar, junto dos seus. Mas relembrar é estar lá outra vez. Naquele sofá verde e preto, a ver o Eduardo Mãos de Tesoura que o nosso vizinho que trabalhava na embaixada americana nos gravou em VHS. O terraço aos domingos, feito esplanada, a receber amigos, família e todos os que quisessem aparecer. A minha mãe a fumar com a perna cruzada, mais nova do que eu, de cabelo preso e despreocupada com o que viria depois. Os miúdos na piscina de plástico e armação na espera sensata do término da digestão. O sol a fazer reflexo nos vidros do terraço e os adultos a fazer da amizade uma interminável narrativa. Os serões eram incrivelmente longos e nunca havia lugar para a solidão. A nossa família jantava à mesa no rigor conservador. Comíamos a sopa antes do prato. Os problemas terminavam na sobremesa e havia tempo para o presente.

                As pessoas que nos são mais próximas estão sempre iguais. Eu não consegui perceber as mudanças na minha mãe. Também é verdade que não sei sequer a idade da minha mãe nas memórias espalhadas que tenho dentro de mim. Não me recordo quando ela tinha a idade que tenho hoje. Mas também devíamos ser diferentes. As gerações nunca se igualam. Vivemos sempre na ilusão da nostalgia, de que os nossos tempos foram melhores, que temos conselhos importantes para oferecer, mas na verdade nem nós acreditamos nisso. Os conselhos são uma forma de nostalgia e servem apenas para revivermos aquilo que já passou.

[mas tenho saudades de ser menino e a minha mãe levar-me às compras no supermercado]

                A minha mãe foi adulta muito cedo. Tenho a certeza que guardou muitos dos sonhos de menina numa caixa que nunca mais abriu. E seria essa a minha maior esperança, de que um dia ela se fosse embora, que escolhesse abrir a caixa e não se deixasse de cumprir.

                Mas essa não seria a minha mãe. O mais certo é ainda andar por cá muito tempo a preocupar-se com os filhos, a ligar trinta mil vezes a perguntar se precisamos de fruta, ou que encontrou umas bolachas muito boas no Lidl e que vai levar três embalagens para todos. Irão passar muitos anos e ainda que a caixa fique por abrir, a mãe vai aparecer à porta com o pacote de Maizena porque faz bem à varicela, e porque também dá jeito, traz também o xarope de cenoura caseiro que deixou a marinar na noite anterior e que faz maravilhas à tosse. Essa é a minha mãe, a que sempre deixou os sonhos para os filhos, que se esqueceu da vaidade das roupas e das joias, mas que se comove com os pais que os filhos se tornaram.

                Hoje, dia 12 de Outubro de 2021, a minha mãe faz 64 anos. Está bonita como no dia em que nasci. Ainda corre de um lado para o outro. Faz do trabalho um propósito. Foi sempre incapaz de não ajudar os outros. Encontrou o amor tarde. Construiu uma família que lhe levou muitos anos de vida. E eu sei que se orgulha profundamente de tudo o que conseguimos juntos. Gosta de fazer anos e detesta que os outros não gostem de comemorar os anos. Há muito que deixou de ser a Deolinda. As netas e o neto sabem que é fácil levar a melhor da avó Didi. Vive na casa onde o amor nasceu. Todos os dias prepara o pequeno-almoço para o João Alberto, que foi o pai que escolhi.

                Quando eu era pequeno a minha mãe disse-me que devíamos sempre fazer os trabalhos de casa antes de ir brincar. E eu nunca soube porquê. Também me disse que não devíamos deixar para amanhã o que podemos fazer hoje. E logo eu que sou o mais preguiçoso de sempre. Por último, explicou-me desde o primeiro dia que não devemos tentar ser iguais a ninguém. E essa frase ficou-me cravada para sempre.

                Hoje a minha mãe faz sessenta e dois anos. Liguei-lhe as sete da manhã porque sei que é o seu dia preferido do ano. Não lhe dei um abraço. Não lhe disse de todo o amor que tenho dentro de mim. Dei-lhe os parabéns e ela sabe que dentro dessa palavra cabe tudo aquilo que vivemos.

                Logo à noite, quando for hora de ir deitar os meus filhos, não deixarei de lembrar o dia que passou. Vou puxar o cobertor da cama dos meus filhos para cima e antes de me despedir, vou cantar baixinho:

                - Dói o dente, dói o dente, maukê, maukê!

                Talvez o tempo volte para trás e eu menino, a oferecer a caixa dos sonhos à minha mãe para que nunca seja tarde demais.

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