Crónica dos livros que ainda não leste

[These Foolish Things, Chet Baker]

 


 

                Quando entro em casa de alguém, a primeira coisa que procuro são livros. Olho em redor e procuro uma estante onde possam estar, vejo os quartos de relance a ver se alguma mesa-de-cabeceira acolhe algum livro. Se não encontro, olho para os armários fechados e imagino que talvez estejam por ali escondidos. Se não encontro, assumo que um pouco do encanto pela pessoa se esvai.

                Fico sempre um pouco triste quando vejo casas cheias de muita coisa, cómodas talhadas por chineses, mesas compridas de cantos recortados, cadeirões de prestigio, televisões do tamanho de cinemas, tapetes que só devemos pisar quando descalços, candeeiros pensados para reis, ou quadros de tal maneira abstratos que o sentido a fugir ao pintor. Casas idealizadas por pessoas que até ousariam utilizar livros como arte decorativa.

(livros como decoração deveria ser punido com prisão perpétua. Quem nunca viu um livro de Da Vinci ou de Dalí, em edições para gigantes, pousada numa mesa de apoio, a enfeitar a ausência de cultura literária, livros pesados que nunca ninguém leu. Folheados no momento da compra e pouco mais.)

                Por mais que tente evitar, sinto que uma casa sem livros é um lugar de infelicidade. A ausência de livros honra os não leitores. Reforça o peso incrível de uma sociedade que se esquece devagar dos seus escritores.

                Também os há, aqueles que têm uma biblioteca tímida, com a obra completa de António Lobo Antunes ao lado das enciclopédias de Como Fazer Quase Tudo em 100 Dias. Nem é tanto a falta de respeito pelo António que merece muito mais do que 100 dias, antes a noção de organização de uma biblioteca caseira.

                E é curioso, o António Lobo Antunes é dos autores que mais vende em Portugal, no entanto, é dos que menos se lê. Não quero agarrar-me a estatísticas, ou qualquer estudo cientifico sobre o caso, mas tenho para mim que é demasiado difícil ler e compreender António Lobo Antunes, ter capacidade para ler o Os Cus de Judas ou Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, quando temos um país de muito poucos leitores. No entanto, não é raro encontrar perdido num t2 em Campo de Ourique ou Algés, três ou quatro livros do António Lobo Antunes

(uma edição de bolso ou outra)

e ter a certeza que a pessoa que o comprou nunca teve intensões de o ler.

                [Ninguém começa por ler Eça de Queiroz.]

Para um jovem que cresceu a ver pela televisão o Tom Saywer e a Ilha do Tesouro, ou para as gerações mais recentes, o Nobita ou o Pokemon, quando lhe é apresentado o livro como objeto de estudo não está preparado intelectualmente para o que aí vem, muito menos terá a capacidade emocional para o acolher ou alcançar a sua verdadeira dimensão.  

                O prazer pela leitura começa muito mais cedo. Ou deveria começar mais cedo. Há casos, raros, de leitores que se construíram na idade adulta. A leitura deve ser antecedida pelo gosto do livro, do toque, do cheiro, da sensação de ter algo nas mãos que é especial. Daí ser fundamental mostrá-lo desde cedo na infância. E penso que isso se faz, sobretudo com os livros para bebés, almofadados, com diferentes tipos de textura, pensados para serem abertos e fechados mil vezes. Esse trabalho é feito, e bem, no desenvolvimento dos vários sentidos. Mas falta-lhe continuidade.

                A leitura, como outra área qualquer do saber, deve ser construtivista. Quando as crianças não sabem ler nem escrever, cabe ao adulto esse papel, de lhe apresentar o objeto, as suas características, a sua forma, o seu conteúdo, mas nunca o seu propósito.

                Desde que a minha filha tinha dois anos, que todas as noites, sem falta, leio-lhe um livro. No começo era eu que escolhia a história. Com o tempo, passou a ser escolha da Constança. Por vezes repetíamos o mesmo livro uma semana inteira e eu até me esquecia da voz daquele personagem da Ilha do Avô, de Benji Davies. Aquilo não era um exercício, não era uma obrigação, não era uma exigência minha, antes, a passagem de uma paixão que pode ou não prolongar-se no tempo. Mas como nunca conheci nenhuma criança que fugisse de livros, tenho a certeza que o meu filho mais novo irá passar pelo mesmo processo, e acredito, compreenderá melhor o mundo em que irá viver.

                O que os livros mostram à criança é que o limite da nossa imaginação não está naquilo que vemos, mas em tudo aquilo que ainda podemos inventar.

                Hoje já não se brinca aos cowboys, às espadas, aos polícias e ladrões. Hoje não se imagina porque está tudo recriado nos jogos de consolas. A criança tem muito pouco espaço para poder imaginar brincadeiras que tinham, para outras gerações, o propósito de recriarem o que viam nos filmes, nos desenhos animados, nas histórias que os avós contavam. Hoje compra-se um jogo de playstation e está tudo materializado num ecrã. Já não se brincam aos cowboys ou às espadas porque há trinta mil jogos à venda que vão ter os cenários e as personagens que as crianças deveriam ter a capacidade de imaginar e reinventar por elas. Mas não, não é isso que os adultos pretendem.

                [Os adultos esqueceram-se da infância que não se repetiu.]

                Os livros e a leitura levam-nos para um lugar que não é de ninguém.

                Quantas vezes não ouvimos que os livros são melhores do que os filmes. Pegando no exemplo do Harry Potter, em que o mundo que cada uma tinha imaginado era tão diferente daqueles que depois encontraram nos cinemas. Aconteceu o mesmo com o Senhor dos Anéis, e mais recentemente com a Guerra dos Tronos, que até seguiu um caminho diferente daquele traçado pelo seu autor.

                Num tempo em que cada vez mais somos confrontados com a realidade, porque a comunicação hoje percorre continentes em minutos, em que sabemos antes do acontecimento que determinado lugar vai ficar assim ou assado. Num tempo em que o direito ao silêncio é visto como estranho, é cada vez mais urgente fugir com um livro.

                [Ninguém começa por ler José Saramago.]

                Mas isto que devia ser uma crónica passou a um texto de frustração com a ausência de leitores. Realmente eu só queria um pouco mais de gente que quisesse ler. Mas é que por vezes esqueço-me que há tantas outras coisas para fazer. Os estímulos são tantos que o sossego de ler um livro talvez seja a coisa mais aborrecida do mundo. É mais excitante ficar no sofá a ver series completas de duas mil horas, ou deixar as crianças no tablet, enfeitiçadas por um qualquer artista de internet a falar brasileiro e pintar o cabelo de amarelo, enquanto os pais degustam um bife de tártaro com os olhos em tudo menos na pessoa que têm em frente, silenciosos, a pensarem para dentro que o mar é bonito e que da janela de casa só conseguem ver o betão, que as crianças ficam tão sossegadas com uma máquina nas mãos, que é estranho hoje em dia os miúdos não brincarem na rua, que no outro tempo é que era, que no nosso tempo os putos eram mais ágeis, menos introvertidos, que a culpa é dos computadores, que a culpa é dos jogos que são para maiores de 18, a pensar isto tudo e a pensarem para dentro que talvez seja boa ideia comprar um telemóvel para os filhos que estão ali ao lado tão sossegados, dar-lhes um telemóvel para que deixem de utilizar o dos pais, mas que ainda assim é incrível que ninguém goste de ler, a pensar para dentro porque raio os miúdos não gostam de ler, porque nós até lhes compramos livros mas eles não querem nada com aquilo, os sacanas dos miúdos não querem estar sossegados só querem é ver youtube, mas ao menos estão sossegados, deixa-os estar, ao menos não me pedem para ir ao parque.

                [Ninguém começa por ler Virgílio Ferreira.]

                Há sempre a esperança de que se voltem para os livros. Mas não há livros em casa. Os adultos só gostam de ler no verão, quando estão de férias. Meio livro naquela quinzena de agosto e está feita a festa. E depois os miúdos, que haverão de gostar de Os Maias, talvez ganhem o gosto pela leitura, que mais não seja por terem de comprar os resumos e aprenderem em três tempos quem é o João da Ega.

                Queria estender-me mais sobre isto dos livros, da leitura, da literatura, do gosto ou desgosto de viver dentro dos livros. Queria muito fazer aqui uma reflexão profunda sobre a reforma na educação sobre este tema. Mas não me parece que haja paciência para terminar esta crónica. Se vocês que ainda aí estão e que não se ficaram pelo titulo, fiquem a saber que eu nunca li Os Maias, que tenho a obra completa do António Lobo Antunes, mas que me interessam muito mais as crónicas do que o resto que o homem escreveu, que li mais de metade dos livros do José Saramago e que o Virgílio Ferreira até é o meu autor favorito, mas acreditem, o meu sonho é ser o Tom Sawyer, caminhar descalço, fugir para a casa do Huck, e ficar o resto da minha vida a ler histórias aos meus filhos.


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