Aquele verão

 


No verão, o hábito dos meus pais teimava em terminar no mesmo sítio: no Hotel de não sei quantas estrelas, onde os ingleses bebiam mais do que era suposto, acompanhados pelos filhos que poucos interesses tinham para lá de estorricarem ao sol com as cabeças protegidas com chapéus patrocinados pelos parques aquáticos em que também fingiam ir.

                Desde que me lembro de existir que íamos para lá no início de Agosto. Nunca abrindo exceções. Carregávamos o carro de véspera, deitávamo-nos antes da telenovela e sabíamos o que nos esperava:

                - Pedro, mete o despertador para as 5h30. Não quero apanhar trânsito.

                O meu pai era metódico, mas só para irmos de férias. Durante o ano esquecia-se do aniversario da minha mãe, dos dias de reuniões de pais, das horas da natação, da medicação para o avô, e de todas as outras coisas que para ele não eram importantes.

[o caminho de carro pela nacional era pensado ao detalhe, as paragens estratégicas para gasolina, um cigarro e a mija técnica a meio caminho]

                Dentro do carro éramos uma família. A minha mãe comprava as revistas todas no primeiro posto de serviço, ria-se alto e contava ao meu pai sobre as inutilidades dos famosos nesse verão, por onde andavam, o que vestiam, com quem estavam, o que eram, o que podiam ser. A minha mãe falava e o meu pai não ouvia, compenetrado na estrada, a sofrer de antecipação pela fila que tardava em surgir.

                Nos lugares de trás, eu já tinha tido 6, 8, 12, e agora 16 anos. Tinha tido todas as idades porque o ano contava-se por Agosto, como se esse fosse o propósito de existir. Nas diferentes idades, o mesmo objeto nas mãos: um ou mais livros. Naquele ano eu vinha a ler A História Interminável de Michael Ende. Já vira o filme trinta mil vezes e andava a adiar o livro há já algum tempo. Quis aquele verão que fosse o presságio para algo que só mais tarde me dei conta.

                Página após página, ouvia o silencio ensurdecedor do meu pai. A minha mãe, dona de casa moderna, com tempo para tudo menos para olhar para mim, para o que sentia e como crescia.

[não culpo os meus pais de nada, afinal era o tempo em que a educação se fazia na rua, entre amigos e só aqui e ali domados pelos avós quando os havia]

                Ficávamos sempre no mesmo Hotel. Nisso os meus pais não eram iguais aos outros. Não se empenhavam, mas guardavam as poupanças para poderem estar por ali 15 dias de uma assentada. Os dias suficientes para descansarem um do outro.  

                Ficávamos em quartos separados, diga-se, eu num quarto, a minha mãe noutro e o meu pai ia alternando. Uma vez ficava comigo, outra com a minha mãe. De acordo com a minha memória, ficava exatamente dois dias com a minha mãe, no início da semana e no final.

[nunca terei coragem para lhes perguntar a razão para isso acontecer]

                A primeira coisa que fazia mal chegava ao meu quarto era despejar os livros que trazia, assim como a revista Gina e os cartuchos de jogos do Game Boy. Alinhava tudo e deitava-me na cama, a mesma desde sempre. Olhava em redor a ver se havia mudanças, algum quadro novo ou lençóis mais coloridos. Nada. Ano após ano, tudo igual. Espreitava pela janela, com vista para o jardim e para a piscina dos miúdos e a dos graúdos. Ficava por ali, estático, a planear o que seriam os próximos quinze dias.

                Naquele ano eu já fumava, pelo que acendi um cigarro. Tinha poucas horas para aproveitar o fumo porque o meu pai a qualquer momento haveria de bater à porta, com os jornais debaixo do braço:

                - Pedro, já vestiste os calções? Anda-te embora, temos de aproveitar que os ingleses não gostam das manhãs.

                Se soubesse o que sei hoje não teria demorado tanto tempo a descer, não teria feito tempo desnecessário para não aturar o meu pai, não teria vestido os calções da O´Neill de duas cores, teria escolhido os outros, que era totalmente pretos e que favoreciam o meu cabedal imaginário.

[mas se soubesse do que sei hoje, as coisas não aconteceriam como aconteceram]

                Desci para o jardim. Conhecia aquilo como a palma da minha mão. Sabia onde se davam os melhores mergulhos, para onde se movia a sombra, qual o empregado que me deixava beber cerveja e sobretudo, sabia quais as crianças a evitar.

                Estendi a toalha perto das sebes, coloquei o cd dos Bon Jovi no discman e tapei os ouvidos com a música aos altos berros. Olhei em volta e à falta de melhor, voltei-me de barriga para baixo com vista para as sebes.

[e foi aqui que tudo começou]

                Do outro lado das sebes, uma rapariga lia um livro de capa preta. Tentei perceber o título e o autor, mas o verde, os pequenos ramos, o movimento breve da rapariga não me deixava perceber. Desliguei o discman, levantei-me e fui espreitar de perto.

[Cartas a Sandra, Vergílio Ferreira]

                Ainda era novo para conhecer a obra do Vergílio Ferreira, sabia que se dava na escola a Aparição, mas não me tinha chegado ainda às mãos. Mas uma rapariga, aparentemente mais velha do que eu, de fato de banho, com um livro que desconhecia na mão, do outro lado das sebes onde ficavam os “outros portugueses” (palavras do meu pai sempre que se dirigia ao outro lado), deixava em mim a sensação de que eu estava a perder alguma coisa de extraordinário ao longo destes anos todos. Sempre rodeado de ingleses de romances de cordel, livros de bolso amarelados com títulos duvidosos. Aquilo era uma lufada de ar fresco até para mim que não me entusiasmava por nada.

                Nesse dia não disse nada. Escrevi no meu caderno de apontamentos o título do livro, acrescentei duas ou três tiradas supostamente poéticas sobre aquele momento e retirei-me para o meu quarto, onde fumei dois cigarros seguidos um do outro.

[um adolescente excitado é uma bomba sem relógio]

                Na manhã seguinte, seguindo o ritual habitual, de toalha debaixo do braço, acelerei o passo para o jardim. Estranhei a presença de alguns ingleses àquela hora e fui para o mesmo sítio da manhã anterior.            

                O meu olhar não demorou a encontrar do outro lado a rapariga do livro. Estava sentada na toalha. O livro estava ao seu lado e desta vez ela estava a olhar na minha direção. Desviei os olhos algumas vezes até o fixar no seu sorriso. Do outro lado, ela era uma rapariga que das duas uma, ou sabia quem eu era, ou atrás de mim estava um inglês charmoso a galanteá-la com mais rigor.

[era para mim que olhava]

                Só quando tive a certeza me levantei e aproximei o rosto das sebes:

                - Tudo bem?

                - Sim, e contigo?

                - Porreiro. Dizes-me o teu nome?

                - Sandra.

                - Como o livro?

                - Sim. E o teu nome é Pedro, que o teu pai está a chamar-te.

 

                Voltei-me para trás e o meu pai gritava em bom português:

                - Pedro, já compraste o jornal? Estás há espera de quê? A tua mãe pediu para reservares a mesa para o almoço naquele restaurante da sopa de peixe.

                Quando olhei de novo para a rapariga do outro lado, já não estava ninguém. Não havia toalha, nem livro, nem um pequeno eco.

                Durante todos os dias que se seguiram, regressei ao ponto de partida. Criei uma rotina particular, tentando replicar o primeiro dia a esperança de a encontrar outra vez.

                Ao décimo dia, ela estava no mesmo sítio em que a deixei da última vez. Empunhava o livro e olhava ao redor, talvez à minha procura para fugir ou para ficar. Tinham passado alguns dias que me pareceram bem maiores, e como tinha tudo planeado desde lá, foi sem hesitações que lhe falei entre os ramos e as folhas verdes:

                - Olá, Sandra! Não te tenho visto por aqui. Até pensei que já tivesse ido embora. Bem, a verdade é que nem sei se esta é a tua casa ou se estás de ferias como eu. Mas tenho-te procurado, para saber se o livro vale a pena.

                - Sim, o Vergílio vale sempre a pena. Mas por aqui também não há muita animação, não tarda acabo de o ler e tenho de ir novamente à biblioteca buscar outro. A verdade é que gosto de me demorar no final de cada livro, sobretudo estes, que nos deixa com uma fininha melancolia por termos de o abandonar. Recomendas alguma coisa?

                - Posso ir buscar o que acabei de ler, História Interminável, conheces?

                - Deixa estar, já o li, não quero voltar. Nunca gostei de livros de autores estrangeiros. As traduções costumam ser horríveis e perco-me sempre naquela que imagino que tenha sido a real intenção de quem o escreveu. Por isso só leio autores portugueses, ao menos tenho a certeza de que não foram escritos por outras mãos.

                - Oh, mas assim ficas muito limitada o que já foi escrito, visto já terem morrido todos aqueles por quem vale a pena ler.

                - Não sejas parvo. Se soubesses a quantidade de livros que estão ainda a ser escritos.

                - Mas esses tens de esperar por eles. Eu cá não gosto de esperar por ninguém.

                - Às vezes na vida só temos de saber esperar um pouco mais.

                - Vais ter de esperar por mim. Eu vou ser o maior escritor de todos. Ainda não me descobriram, mas vais ver que não tarda nada estou aí na tua biblioteca.

[são tão nítidas estas memorias que estou a transcrever o diálogo tal como aconteceu]

               

                Nos dias que se seguiram marcámos encontros no mesmo sítio de manhã, de tarde e, na maioria das vezes, à noite, depois de jantar. Foram precisamente cinco dias em que nos vimos por todas as horas em que estávamos acordados.

                A Sandra estava de férias com os pais. Tinha chegado no mesmo dia que eu. Tinha 20 anos. Estudava na universidade e tinha um namorado trabalhador e bom rapaz. Gostava tanto de poesia como de respirar. Nunca me disse onde morava:

                - Se te disser onde moro ainda vais à minha procura e isto tem de ser muito mais difícil.

                Dos meus 16 anos, era difícil entender a forma enigmática como juntava as palavras. Eu não era um tanso qualquer, um labrego da aldeia. Eu vinha de Lisboa, tinha o mundo que a cidade nos dá. Os meus amigos, quase todos mais velhos, deixavam um espaço para que eu não me sentisse inferior por ser mais novo. O ambiente familiar permitia-me viver nas ruas durante o dia inteiro e escolher as horas a que chegava a casa. Fumava para me sentir adulto. Pensava mais em raparigas do que aquilo que mostrava. Ter experiências sexuais fazia parte dos planos, mas não sabia dançar. Vivia nos livros aquilo que me era impossível sentir na vida real. Tinha 16 nos e tinha-me apaixonado.

[ninguém esquece a primeira vez.]

                Como era expetável, ainda que não quisesse acreditar nisso, o último dia de férias apareceu. Nos dias que antecederam ao último, pouco tinha convivido com os meus pais. Almoçávamos e jantávamos no restaurante do hotel quase todos os dias, só amiúde íamos lá fora, à vila, para conhecer os restaurantes que o meu pai já conhecia dos anos anteriores.

[nunca mencionei o nome da Sandra aos meus pais]

                No último dia organizei até ao mínimo detalhe o que iria fazer. Encontraria a Sandra no mesmo sítio de sempre, mas tentaria uma última vez passar para o lado de lá das sebes, tentaria chegar perto das mãos e talvez conseguisse propor-lhe a eternidade do corpo. Era este o meu plano. E como de todas as vezes que pensamos levar a bom porto um plano perfeito, algo corre mal.

                A Sandra sempre recusara a minha passagem para o lado de lá, ou até o convite que tantas vezes lhe fizera para que se juntasse a mim deste lado.

                - Pedro, venho para aqui desde miúda. E desde sempre que olho para o teu lado e vejo os ingleses e os poucos portugueses nesse ambiente de beleza. Às vezes vinha aqui à noite para ouvir o senhor coxo que toca piano. A música que tocava chegava aqui fraca, fraquinha, mas nos dias de maior vento, conseguia sentir que estava mesmo aqui perto. Ouvia o tilintar dos copos, as pessoas vestidas a rigor, o perfume doce das famílias que se juntam no jardim, as palmeiras a soarem como um sonho que nunca consegui viver. Por isso não me peças para ir para esse lado. Prometi que um dia haveria de estar nesse jardim com as luzes a fazerem-me sombra, beber um copo de vinho e dançar devagar ao pé do piano como se a noite nunca fosse terminar. Não me peças outra vez que vou responder-te o mesmo, outra e outra vez.

                O último dia foi um pneu furado. A Sandra não apareceu.

                Não dormi a noite inteira. No meio do azar, o meu pai dormiu no quarto com a minha mãe e deixou-me sozinho, o que facilitou a minha tarefa de terminar o maço de tabaco inteiro, todo metido por dentro da minha tristeza, na humilhante sensação de ter falhado em algum momento, de não ter estado à altura da ocasião, de ter estragado tudo por pensar que a literatura nos ensina tudo.

[tinha este verão trancado na minha memória, pelo que nunca o partilhei com ninguém]

 

Sempre que volto a esses dias não consigo encontrar uma razão para aquela ausência. Talvez o namorado tivesse aparecido de surpresa, de mota, a fazer barulho nas traseiras, a anunciar que a sua chegada era o fim da excitação do miúdo da porta do lado, talvez tivessem feito amor ou sexo a beira do mar, ou por cima da mota, ou se calhar não. A única certeza que viveu comigo anos e anos foi a de que o desgosto que sofri foi morrer lentamente com a ideia clara de que o amor promete o que não pode cumprir, que é durar para sempre.

 

                Estamos no outono, a minha idade é diferente. Aos 35 anos já não me lembro bem da História Interminável, sei que havia um cão voador, um miúdo chamado Bastian e um índio, e umas pedras que falavam. Não tenho a certeza se o que lembro melhor são passagens do livro ou fragmentos do filme que vi mil vezes. Talvez uma idealização dos dois.

                Sou um adulto parecido com o meu pai. A única diferença é que nunca casei. Não tenho filhos e o curso da universidade não me ensinou nada. Às vezes tento lembrar-me em que ano desisti. Assim por alto, penso que tenha ficado algures entre o terceiro e o quarto ano, perdido na matéria que me dizia pouco e distraído com a bibliografia recomendada pelos professores, a única coisa verdadeiramente importante.

                Trabalho numa empresa nacional de lavagem de automóveis. Não sujo as mãos porque tenho uma secretária e atendo telefones e trato das marcações. Nas ferias dos moços que fazem o trabalho sujo dou um jeito e aspiro um ou dois carros para não parecer mal. Sou um tipo preguiçoso, mas consciente disso. Passo os dias entre nomes de clientes e orçamentos, quando o tempo me permite leio durante o horário laboral. Sou um tipo normal, a viver uma vida normalíssima. Visito os meus pais de quinze em quinze dias, de onde trago a marmita para os dias seguintes. Não bebo álcool e deixei de fumar aos 16 anos. Não sou feliz. Não sou infeliz. Sou qualquer coisa entre ambas. Por vezes tenho sexo com a minha vizinha do terceiro andar, que é divorciada e que não quer compromissos sérios, apenas um jantar mensal de sushi encomendado seguido de uns ruídos estridentes quando os filhos vão para o pai. Sabemos que tarde ou cedo isto termina, vai durar o tempo suficiente para que nos apoquente algum defeito no outro. Até lá, sabemos que temos prazo de validade, como em tudo na vida.

                Escrevo no presente porque esta história termina hoje.

                Peguei cedo ao trabalho e como habitualmente, bebo um abatanado mal chego ao escritório. Olho para a agenda diária e temos um cliente a chegar cedo. Lavagem completa, para ter especial atenção aos estofos.

                Hoje temos um artista de baixa. É sexta-feira e nem é preciso explicar muita coisa. Tenho de dar uma ajuda ao colega que está sozinho de serviço para 7 carros agendados para esta manhã.

                O primeiro carro entra na garagem e é um assombro. Tesla Modelo X. Mais um pavão com a sua senhora. Devem ser os dois bonitos. Ele sofisticado, cheio de meias horas, sapato de berloque, calça e camisa por medida, um figurão. Ela, de certeza que sem paciência para esperas ou conversas de domingo, a querer tudo novo, sem o cheiro desagradável do pobre rapaz que transpira em bica a partir do primeiro serviço.

[Tenho este lado perverso e invejoso de fazer o filme todo antes de qualquer coisa acontecer.]

 

                Mas quando a porta abre, uma mulher sozinha. Traz umas calças de ganga e blusa bege. Parece desconfortável. O carro deixa-a entre a vergonha e a insegurança de não saber bem em que botão carregar.

                - O meu marido marcou limpeza e pediu-me para trazer o carro na vez dele. Peço imensa desculpa, não sei desligar o carro.                                              

                - Ora essa minha senhora!

                O rapaz, como é seu apanágio, orienta a mulher para o trajeto mais limpo até à zona do escritório.

                Eu recolho até ao meu lugar na secretária, não sem perguntar se queria café ou um copo com água. Responde-me que não, que tem pressa, mas que agradece a amabilidade.

                Habituei-me a estar no mesmo lugar com outras pessoas e saber respeitar a ausência de conversa. Desde pequeno que o meu pai me habituara ao seu silencio ensurdecedor. Era ágil na partilha de quatro paredes, ainda que neste caso sem janelas, sem me fazer notar. Ao longo da vida vamos aprendendo que precisamos dos outros, mas os outros podem não precisar de nós. Pelo que decidi fingir que inseria dados no computador e ignorei a presença da mulher.

                - Por acaso já ouviu um piano a tocar numa noite de verão?

                - Ah, desculpe?

                - Se já teve a oportunidade de ouvir um piano a tocar numa noite de verão?

                - Eh, sim, diria que sim.

                - Não mudaste nem um bocadinho.

                - Sim, estou igual. Tu estás diferente.

                - Diferente? Então?

                - O normal. Já se passaram alguns. Na verdade, acho que já nem me recordava de como eras. Nem te reconheci, por isso talvez estejas diferente, não sei.

                Continuámos a falar de trivialidades quando o único assunto que me interessava saber era a razão pela qual não tinha regressado. Não queria saber por onde tinha andado. E era escusado ter sabido que afinal o motoqueiro não era motoqueiro, mas um tipo normal que lhe garantiu o resto da vida. Tinha três filhos e uma casa comprada a pronto. Vivia atrás de projetos filantropos na procura de ocupação mais interior que exterior, cuidar dos outros era como cuidar de si. Admirava o marido mais que tudo.

[a ousadia de me contar que o marido ao longo de todos estes anos ainda era a sua companhia preferida]

                Falou sobretudo dos encantos da vida, dos filhos sem lhes referir o nome, tratando-os pelo mais velho, o mais novo e o do meio. Do que estudavam e do que iriam ser. A facilidade de aprendizagem e o conforto dedicado que trazia consigo, pelos filhos, pelo marido, pelo que lhe foi acontecendo.            

                Da minha parte porque ouviu. Afinal havia pouquíssimo para lhe dizer sobre a vida simples que construíra. Conversei porque tinha de responder e fugia das perguntas. Mostrei-lhe o meu espaço de trabalho como o mundo inteiro coubesse naquele minúsculo escritório de garagem. Disse-lhe pequenas coisas, quando o que queria mesmo era descrever todos os meses de Agosto que voltei àquele malogrado lugar. Nos primeiros anos com os meus pais, e mais tarde sozinho, mesmo tendo poucas poupanças para tamanho luxo, fi-lo e continuaria a fazê-lo até ao dia em que a voltasse a encontrar. Fugi ao tema da vizinha do terceiro andar porque temia que não sentisse ciúme algum. Para quê saber do sexo ocasional e combinado?

[não há nada mais humilhante do que sabermos o dia da semana e a hora exata em que saciamos as vontades]

                Continuava uma leitora maravilhada. Organizara uma biblioteca em casa, obrigando o marido a reorganizar as assoalhadas de casa. Tinha uma escada movel para percorrer as estantes. Sobravam-lhe as obras clássicas. Tinha pelo menos um livro de escritores de toda a parte do mundo. Cuba: Pedro Juan Gutiérrez e Reinaldo Arenas; Hungria: Magda Szabó e Sándor Márai. Chile: Roberto Bolaño; China: Mo Yan; Cabo Verde: Jorge Barbosa e Germano Almeida.

                Da literatura portuguesa não lhe falta uma letra do alfabeto. Explicou que quando em nova, só podia requisitar livros da biblioteca municipal, e ficou-lhe o sentimento de ser pobre porque não podia guardar os livros que a tocavam. Terá sido por essa altura que começou a desenhar o seu trajeto pessoal. Foi o que pensei. Nos grandes desgostos se erguem as maiores ambições. Foi exatamente isso que me explicou.

                Quando já era tempo de ir embora escreveu o número de telefone num papel e não se despediu sem pedir que lhe ligasse dali a meia hora.

[nem hesitei um segundo]

                Justifiquei ao rapaz que tinha de ir almoçar mais cedo e saí. Percorri a garagem por entre as colunas, o bafo quente que vinha das condutas, dos carros, das pessoas, do óleo, e fui para a rua. Esperei vinte e nove minutos e liguei-lhe.

                - Vem ter comigo ao Hotel Valverde.

                - Agora?

                - Sim, havia de ser quando? O quarto está em nome de Vergílio Ferreira.

                - Ok.

 

                Cheguei ao Hotel em poucos minutos. Ao dar entrada, sentindo-me como peixe fora de água, cumpri com as normas habituais. Dirigi-me com o semblante mais sério que sabia a um senhor que me encaminhou para o quarto. Não tinha bagagem. A minha roupa não combinava com a classe, a cor, a luz ou sequer a pinta do empregado. Eu era o gajo que limpava os pratos na festa dos milionários, era essa a sensação que tinha naquele momento. Mas mantive-me firme.

                À entrada da porta do quarto, agradeci timidamente e bati à porta. Do lado de lá:

                - Entra por favor.

                - Não tenho chave, ou cartão, ou lá como é que isto se abre.

                - Ah, desculpa. Vou abrir.

                Quando a porta se abriu, um incêndio dentro de mim. A Sandra tinha regressado. Tinham-se passado dezanove anos desde o último dia em que a vira. Mas ali, no momento exato em que o recorte do seu rosto acompanhava o encostar da porta, encontrei-a como em menina. Na idade adulta conseguimos explicar melhor aquilo que vivemos, aquilo que sentimos, aquilo que nos faltou nos tempos em que crianças, imberbes, resignados à nossa individualidade, sacudíamos as primeiras emoções por outra pessoa. Mas eu tinha agora trinta e cinco anos, tinha visto a vida de frente para trás vezes sem conta. Escrevera textos sobre  aquele verão e sobre aquela pessoa que as malhas do tempo esgotara na minha memória. Mas ela estava ali. Ia jurar que nunca nos tínhamos separado. Nunca chegáramos a ser amantes, mas a cabeça é um lugar estranho e consegue criar o que não aconteceu. E dentro de mim fizemos amor de tantas vezes, enjoámos como se os nossos braços fossem barcos e o rio inteiro vivesse nos lábios que tocámos, a memória.

[longe de ti tive tanta sede]

                Sentámo-nos à cabeceira da cama e o silêncio.                 

                Éramos perfeitos desconhecidos. Nem sequer tínhamos uma história bonita para contar. Na minha vida ela existira sempre. Na dela eu passei a ser um poema inacabado. Nem sabíamos se teríamos alguma coisa em comum. Eu não era mais o miúdo de 16 anos que espreitava envergonhado por entre as sebes. Ela guardava a memória da minha frescura e de uma sensibilidade que eu perdera algures.

                Dois adultos num quarto de Hotel porque a mulher casada, com três filhos, encontrara uma amizade infantil, num acaso meio piroso, e decidira convidá-lo para uma viagem que não tinha onde terminar.

                - O que estamos a fazer aqui?

                - Não sei. Tu pediste e eu vim.

                - Mas fazes ideia porque te pedi para cá vires?

                - Não faço ideia. Suponho que deixei de saber alguma coisa há muito tempo.

                - Pedi-te para vires ter comigo porque queria que me tirasses uma fotografia. Eu vou despir-me e tu vais ficar aí sossegado. Tens a máquina aí atrás, só tens de a ligar e apontar para mim quando eu te disser. Depois vamos fazer amor e tu vais dizer-me um poema. Depois saímos e tudo o que aconteceu fica por aqui.

                - O quê? Estas a falar a sério?

                - Podes pegar na máquina por favor.

[sempre me assustou o corpo das mulheres. São tão bonitas as mulheres. Os corpos das mulheres não têm a brutalidade dos homens. Há sempre um pouco de suavidade. O cheiro por entre as pernas, a rugosidade dos mamilos que se alteram. Na excitação das coisas, o corpo da mulher demonstra-se muito mais que o dos homens. Como se a circulação sanguínea da mulher trouxesse ao de cima a transformação perpétua das suas formas. Ver uma mulher nua sempre foi para mim a dolorosa impressão de que viveria eternamente por entre o peito de uma mulher.]

                Ao olhar para o rosto da Sandra pela lente da máquina fotográfica, encontrei o rosto para lá das sebes, a rapariga do livro que sorria sem expressão, encontrada na vastidão do passado, mas agora no presente, e o corpo agora com trinta e nove anos era a fantasia que recriara com detalhe, não porque me imaginara no cúmulo profundo do sexo, mas porque o amor da nudez consola-nos, abriga-nos, promete-nos o término do sofrimento, das saudades, do inacabado. A Sandra, deitada na cama, debruçada nas almofadas, com as mãos sérias, as pernas estáticas, os pêlos púbicos sumidos e quase o sexo a desconversar e a fazer-se adormecido.  

há palavras que não têm silabas
são passeios que desconhecem os rostos 
estradas sem principio
vestidos sem tecido
cabelos com um vento ausente 
momentos sem ausência
e há sentimentos que sem se perceberem existem
e há um mar que se faz adentro, com a capacidade de se abraçar em barcos
e há o eu que te sonha por tardes sem fim
e há um ramo que me segura a ti e a mim 
seguremos esse ramo e o infinito é o tempo que nos basta.


somos um rio sem margens
um fio de navalha com cortes incompletos
somos ondas fugidas de sal
espuma a preto e branco
somos calma solene de conchas em gritos
somos a palma de mãos que se encontram
futuros desejados que acontecem
somos nós
isso bastará.

 

                - Podes parar e guardar a máquina. Leva esse saco castanho que está no chão e podes ir embora.

                - Antes de ir tenho de te dizer uma coisa. Naquele dia, no último dia, eu tinha intenção de dar-te um beijo.

                - E porque não deste antes?

                - Porque tinha medo de que não quisesses o mesmo.

                - Se calhar foi a melhor não ação que fizemos a vida inteira.

 

Ao sair, sem antes pegar no saco castanho, preferi não olhar para a Sandra. Desci de escadas e ao sentir o fresco daquele dia, percebi que era um fracassado. Esperei anos por este momento e afinal não fora nada como eu havia projetado anos a fio. A Sandra permanecia um enigma que eu não teria nunca capacidade de entender. Desperdiçara os anos todos na espera do acontecimento que pudesse permitir a minha entrada triunfal no reino dos céus e tudo acabara no mesmo ponto em que começara.

Abri o saco e lá de dentro retirei o livro de capa preta. O mesmo que há dezanove anos mudara a minha vida: Cartas a Sandra, Vergílio Ferreira.

Na primeira página, as palavras que amanhã continuarão a viver dentro de mim.

[Eu esperei por ti nessa noite triste. Na hora que estipulámos, no sítio exato em que jurámos. No mais alto da nossa cidade, no cume de todas as nuvens e onde a noite não nos visita. Eu estava lá, estive na espera a noite inteira. E tu sem apareceres.]

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