Eu Gostava de Aqui Estar
Hoje sonhei com a Chan Marshall. Foi daqueles sonhos que tardamos em abandonar, que nos acompanham o resto do dia, até voltar a adormecer e finalmente esquecer, perceber que foi um sonho, foi apenas um sonho.
Estava a passear no Jardim da Gulbenkian, tinha acabado
de beber um café ao balcão e sentei-me num dos muros que se espalham pelos
jardins. De pernas esticadas, a entrelaçar os pés no aborrecimento de quem
ainda não entendeu que aquilo não é real. Engolido por uma imaginação que
parece autêntico porque nada demais parece acontecer.
O ver um pato a caminhar para o lago, entre a
folhagem, persigo-o e quase escorrego na margem enlameada. Digo asneiras e
agarro-me aos ramos que rapidamente se quebram. Por pouco não molho os pés e
encharco as calças de ganga.
Desanimado, porque o pato fugiu sem que lhe pudesse
perceber a intenção, volto para a relva adiante, deito-me no chão e uma menina
aborda-me. Fala inglês (e aqui começo a estranhar) porque não entendo o que
diz, eu que sempre tive 5 a inglês e era perseguido pelos professores que
sempre duvidaram que as respostas nos testes viessem da minha cabeça. A menina,
que não tinha mais de dez anos, dizia coisas impercetíveis e olhava para mim.
Atrás dela, a mulher que logo intitulei a mais bonita do jardim, desculpou-se
sem palavras, gesticulando qualquer coisa que entendi como
[não se aborreça, é só uma criança]
E é quando acontece o mais triste de um sonho, a sensação
vazia de saber que aquilo é isso mesmo, um sonho, que vamos acordar, nesses
bocados de tempo que não conseguimos determinar quanto, mas que nos leva até ao
despertar, mesmo que não queiramos ir, mesmo que queiramos agarrar o momento e
ficar por ali, mesmo que implique morrer a dormir, mesmo assim.
Era a Chan Marshall.
Passeava com a filha para um lado e para o outro. Perseguidas
por mim que já não estava deitado, de repente estava atrás delas, com uma máquina
de fotografias instantâneas na mão, a querer pedir um retrato com ambas. De cada
vez que me aproximava o suficiente para lhes dizer:
- Permitem-me
uma fotografia?
Elas continuavam
em movimentos contínuos para a frente e para trás. Até chegarem ao muro onde eu
estava sentado ainda há pouco. Atrás delas vinha o pato, encharcado e a dizer
[sai daqui, sai daqui]
Eu encostava a máquina ao meu rosto, de encontro ao meu
olho direito, tentava enquadrar a Chan Marshall e a filha, mas encontrava
sempre as duas de costas, desenquadradas do que era a minha objetiva.
- Chan, ouve-me, posso tirar uma fotografia convosco?
- Yes. But without the girl.
- Sim,
só preciso de uma confirmação que estive contigo.
- But
i´m not here. You are.
- Mas
era o que eu mais queria. Que eu estivesse aqui.
[depois acordei]
Tocava no despertador a belíssima música de Cat Power,
Wish I Was Here. Levantei-me, tomei banho, vesti a camisa branca e as calças chinos
azuis, calcei os sapatos castanhos e fui lavar os dentes. Olhei para o espelho
e por momentos quis voltar para a cama, adormecer novamente, regressar aos
jardins da Gulbenkian, correr atrás do pato, molhar os pés, sacudir a lama da
sola dos sapatos e encontrar os braços da Chan Marshall só para que pudesse
apontar-nos a máquina fotográfica e guardar aquele instante para sempre, como
prova de que tinha acontecido.
[eu estive aqui]
Comentários
Enviar um comentário