A nossa equipa



    Tenho tido um sonho sempre em repetição. Cada vez que adormeço, seja de noite, seja de tarde ou manhã, tenho sempre o mesmo sonho em repetição.
    Ao acordar, lembro-me sempre do que sonhei. Como se ainda estivesse embrenhado, como se o acordar permitisse concretizar o sonho.
    O Mundo inteiro sonha durante o meu sono. Alguém estará pelas Américas, deitado numa cama ou numa rede e estará a sonhar ao mesmo tempo que eu. Os meus primos muito, muito afastados, também devem sonhar em simetria comigo. O Mundo sonha porque ele é feito de sonhos. As pessoas sonham porque nos confins de si mesmas, estão memórias que deviam ter acontecido. Eu sonho porque não sei fazer mais nada.
  
    «Estou a entrar no campo do Sporting Clube de Linda-a-Velha. Olho o símbolo enorme da entrada e trespasso as memórias do tempo para reconhecer todos os nomes, todos os Presidentes. Encontro o nome Vítor Coruche, pai do meu padrasto João Alberto. Encontro o nome Fernando Magalhães, pai do meu tio Carlos Magalhães. Todos os Presidentes do meu clube ali expostos, na memoria de quem os lembra, de quem os encontrou em determinado momento da grandiosa história deste enorme clube.
    Ao descer com o carro na estrada que tantas vezes fiz a pé, em pequeno, cumprimento o senhor Aquiles que me acena suavemente, como se eu ainda tivesse 14 anos e ele me aconselhasse a ter mais tino.
    A pequena entrada para o bar do clube é demasiado estreita para todas as pessoas que lá querem entrar. É ali que muito acontece. No bar do clube, muitas pessoas seguram copos e conversam sobre a vida, o jogo, a vida, os miúdos, o futebol, a vida, o jogo. As pessoas sentam-se harmoniosamente e atiram para o ar pedidos de cerveja, de sandes, de sumos, de vinho. O bar é um dos centros de acontecimentos da história do clube. No balcão, o João Alberto acerta os resultados da semana e oferece um pacote de batatas ao goleador da semana. Pelo menos era assim no meu tempo, no tempo de muitos.
    Continuo o percurso até ao parque de estacionamento, passando ao lado do campo, como se passeasse por uma pista de tartan que circunda o tapete verde. Lembro o campo de outras cores: um pelado de dimensões extremas, enorme. Um pelado que ouviu muitos gritos de dor e de rejubilo. Lembro o Vítor Magalhães de fato de treino engomado, a gritar para as tropas e a orientar o que parecia por vezes anárquico. Sobe. Sobe. Desce. Desce. Circula. Mantém a posse. Num pelado, o Vítor Magalhães a ser treinador antes de todos os outros treinadores.
    Estaciono o carro entre outros muitos. A gravilha a salpicar nos pneus. O barulho da gravilha por baixo do meu carro e eu pouco importado. É o meu clube, quero lá saber.
    Caminho já pelo trajecto dos balneários, ouço vozes dentro. Espreito e vejo o Tózé a reclamar com alguns miúdos que se demoram e ele que quer limpar a cabine antes de uma outra equipa entrar. Mais à frente, na cabine nº1, estão os melhores jogadores do mundo. Sei perfeitamente cada rosto que vou encontrar lá dentro. Mas passo por eles e nem uma espreitadela. Deixo-os a conversar sobre as namoradas, sobre os jogos, sobre a escola e as miúdas que não são namoradas, sobre os professores que lhe marcaram demasiados trabalhos, sobre os treinadores que por vezes são rabugentos. Deixo-os e vou para a cabine dos treinadores, para discutir o treino, para encontrar o Morais e o Tiagão, para discutir o treino e para nos rirmos um pouco antes de seguirmos para mais um treino.
    Ao entrar, o Morais aponta-me o relógio e diz: Isto são horas? E eu deixo o silêncio comer aquelas palavras. Discutimos o treino. Muda aqui, tira aqui, mantemos isto, alteramos isto. Treino pronto para ser o melhor treino da época. Assim são todos. Os planos de treino, todos os dias são feitos para serem os melhores da época.
    Os três, eu, o Morais e o Tiagão, vamos ainda à cabine nº1, uma palestra antes do treino como reflexão do jogo anterior. E batemos à porta, afinal, aquele é o espaço deles, o local onde nós somos os forasteiros, onde eles decidem coisas, onde eles podem ser os adultos responsáveis pelos seus actos. Nós, os treinadores, ali naquele espaço somos convidados.
    Ao entrar, vejo-os todos sentados, na espera de palavras. E nós que por vezes nos faltam as palavras para descrever esta época. Uma temporada que vai a meio e que nos dá tanto contentamento. Vinte e quatro jogadores sentados com ânsias de treinar. Ânsias de subir a rampa e treinar.
    Depois de breves palavras, subimos todos para mais um treino.»

    E é neste momento que o meu sonho ganha contornos estranhos, contornos de sonho.

    «Subimos para o relvado sintético e uma equipa adversária está à nossa espera. De repente, o que era um treino é agora um jogo. Enquanto subimos a rampa, ouvimos gente a gritar das bancadas. Os bancos vermelhos que moram nas bancadas são agora pessoas aos gritos, a pedir um grande jogo, uma vitória, o título. Pessoas que acreditam, que assumem a crença. E nós a subirmos a rampa com uma vontade inabalável de sermos enormes. E essa vontade não se esgota no aquecimento, nem mesmo no alinhamento. Essa vontade cresce com o grito de entusiasmo que damos em mil abraços: S-C-L-V, Linda-a-Velha, Linda-a-Velha, Linda-a-Velha.
    O jogo começa. Desde o banco de suplentes que está vazio, eu, o Morais e o Tiagão em exulto a ver o futebol que nos encanta.
O David ocupa a baliza, como um pássaro russo que consegue voar por fábulas, sacode as luvas e tem a ideia de uma defesa histórica que mudará a sua vida. Ao seu lado e a ocupar a outra metade da baliza, o Quaresma, recuperado de lesões e a estampar o seu tamanho com uma simplicidade de gigante, recuperado e alegre. Os dois cumprimentam-se a cada defesa feita. Alternam os voos e riem um do outro. São dois guarda-redes que se unem para ganhar.
Na zona central da defesa, são muitos. Uma barreira, qual grande muralha. O Malato está sereno e penteia a chuteira Nike para uma qualquer recepção de bola e uma saída a jogar, com a classe de uma pluma que sobrevoa o relvado. Ao seu lado direito, o Amaral com a manha de jogador experimentado, sempre mais inteligente que a inteligência, a roubar lances ao destino e a ser muito maior que a sua altura, quase do tamanho do amigo Afonso que da sua robustez faz o encanto daquela zona central. O Afonso que vê o jogo como se tivesse na alta montanha, com uma leitura literária de como se ganham lances de cabeça, de como se fazem golos de tão longe. A completar o quarteto, o Pedro Sério que nunca finge, nunca finge ganhar a bola, ganha e pronto, recupera e pronto, sem fingimentos, sempre com a amplitude das suas pernas, na garra de querer ganhar mais, sempre.
    Mas a defesa é o centro e os lados. As zonas laterais que explanam o campo todo. As zonas que são ocupadas pelos defesas que são muito mais do que isso. Assim, o Gonçalo Cunha, com nome de atleta de televisão, discute confrontos com a sua bota esquerda, enquanto sente o cabelo penteado e prepara um cruzamento que pode dar golo, pode dar perigo. Assim, o Serra, a lembrar outros laterais de garra, a subir de um lado e de outro o terreno, a ser um pequeno grande jogador e a pontificar a sua função com roubos de bola e longos cortes nas costas. Assim, o Álvaro a queimar o gesso que o travou por semanas, a distribuir agressividade e entradas fora de tempo, a conduzir a bola desde a lateral direita e a ser mais um avançado que quer ajudar, quer marcar. Assim, o Barroso que imagina douradinhos enquanto rasga o seu opositor em força, que cavalga de uma ponta à outra com uma força que ultrapassa todas as medidas, e que destrói os oponentes com uma qualidade extrema. Assim, o Fábio, que fugiu a uma operação e veio a tempo de mostrar que o futebol ainda lhe vive no pé esquerdo, que o futebol ainda é o seu brinquedo de miúdo e os livres e todas as bolas paradas também brinquedos que gosta de brincar. Assim, todos os defesas laterais a jogarem como corredores de fundo que numa gincana de fantasia fazem o jogo acontecer.
    Os três treinadores, o Morais, o Tiagão e eu, continuamos a observar o jogo, a ver uma equipa, a nossa equipa, a equipa de todos, o Sporting Clube de Linda-a-Velha, as listas vermelhas e brancas, o clube que nos fez homens. O jogo é uma valsa que a melhor equipa do mundo dança.
    No meio campo, o Miguel Camelo a jogar ao primeiro toque com cortesia, como uma operação que é delicada e que só precisa de calma e delicadeza, a acertar o passo da bola e a movimentar o bloco ao ritmo de um passe. Em contraste, o Miguel Cerejeira, na electricidade das pernas, a criar dinâmicas que existem para lá de todas as intensidades, como aquele golo a começar o nosso sonho, a percorrer o campo todo com habilidade e nervo. O Ricardinho está entre os dois e entende o jogo com uma intelectualidade abismal, a profundidade do seu futebol é o rosto da simplicidade, a técnica refinasse com a calma e ele é todo um oceano de acalmia. Na mesma tranquilidade, o Rafa que trabalha a bola com os dois pés e extasia-se numa abertura, num passe de rotura, com as duas botas encontra caminhos que ninguém encontrou antes, com as duas botas transpira categoria. E nessa onda de técnica, o Ruben sorri, sorri de cada vez que a bola se lhe cola ao pé, e é logo um passeio, uma caminhada de truques de magia, passos trocados para envergonhar os adversários e sugar só mais um pouco de fineza ao futebol. Nesse lugar do jogo, está também o Alex, dentro da sua genialidade toda a expansão do futebol total, do futebol espectáculo, com execuções tremendas de artista, repentinos de elevado gabarito técnico, jogadas estonteantes que têm o orgulho da equipa, tudo num só corpo que tem futebol dentro.
    Na linha avançada o Guerra chama o requinte todo para si, em arrancadas individuais que por vezes esmagam os defesas, em malabarismos que sem excessos são flechas mortais. Tantas flechas mortais como avançados. Os golos. Os homens perto do golo. O Duarte como um touro enraivecido, com a máxima de que os golos valem ouro, a velocidade e os golos valem ainda mais ouro, a velocidade, os golos e a força valem o outro todo do mundo. E ele vive dos golos, dos festejos, das danças nos festejos. Como as danças de pés trocados e diversão do Herman, que chegou tarde mas a tempo de fazer história, a tempo de encantar a extrema-direita com nós e desenganos para os defesas, fintas e reviengas aos defesas. E para se juntar à festa o Kevin, sempre em atrasos e desculpas, sempre dividido entre o amor e o futebol, a trabalhar a bola com a sua canhota e a afirmar-se em cantos e remates do meio da rua, mas sempre o amor e o futebol, as assistências e os golos, o amor e o futebol. Nesse lugar, onde o amor acontece, o João Henriques, todo ele ternura pela namorada, todo ele ternura pela bola, a marcar golos de engenho e a dedicar mil corações à sua amada, a trabalhar entre o batalhão de defesas e a ser grandioso na batalha que vai travando para dar golos ao goleador, ao senhor grande área: Barradas. O finalizador em comprimento, o senhor frieza, os golos para todos os gostos e a regularidade dos festejos, os olhos sempre nos guardiões e nem a mínima mágoa no acto de marcar.
    E perante este espectáculo, nós, os treinadores, em aplausos e regozijo. O Zé Antunes, também ele metido por dentro de uma alegria universal, a erguer os braços em festejos antecipados. Os quatro metidos no nosso próprio contentamento. A perceber que uma equipa é feito por todos, até daqueles que estão perto da bancada, abraçados em linha: Mateus Zuka, André Lopes, Pedro Ferreira, Zé Miguel. Estão os quatro a puxar pelos 24 que estão dentro de campo. E eles conhecem o sonho, caminham pelo sonho e fazem parte do sonho. Todos juntos criámos este sonho e percorreremos todos os momentos para que consigamos erguer o nosso objectivo, na certeza de que se não o conseguirmos, pelo menos tivemos vontade de sonhar, de querer e que tudo fizemos para o conseguir. E esse é o nosso direito, o mesmo de todas as pessoas do mundo, aquele direito que ninguém nunca nos roubará: O direito de sonhar.»

    E tem sido este, o meu sonho em repetição. O meu orgulho é tanto nestes miúdos que ao vê-los jogar, consigo sentir tudo novamente através deles. A cada vez que os vejo chegar ao treino, quando eu também chegava ao treino e as brincadeiras se sucediam entre colegas e amigos. A cada vez que os vejo treinar, quando eu treinava ao lado do Morais, no campo, antigamente pelado e nesses momentos em que nos fizemos amigos e terminámos ainda mais amigos e hoje treinadores juntos. A cada vez que os vejo vestir a camisola listada vermelha e branca, quando eu vestia com um orgulho tremendo a mesma camisola e festejava vitórias e entristecia em derrotas junto a colegas e amigos, hoje a trabalharem como treinadores juntos. A cada vez que ouço o grito de guerra, quando eu e o Morais e o Tiagão o fizemos num outro tempo. A cada vez que marcam um golo e festejam com sorrisos, quando eu também os festejei com o Morais, o Tiagão.
    E isto nunca ninguém me vai roubar, o de poder sentar-me com o meu amigo Nélson num café e dizer com a maior das alegrias que este grupo de trabalho faz de cada dia um dia melhor.



   

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