O vento e a gente
Passa os dedos
pelo papel brilhante, quase pegajoso, a infiltrar-se na pele, a querer colar-se
no começo das mãos. O papel brilhante de fotografia, memórias que se guardaram
a si mesmas sem uma autorização. Nos degraus onde se senta agora a segurar as
fotografias de outros tempos, estão marés que se esgotaram pelos passeios de
pequenos barcos que deixaram de acenar para terra. O rio Tejo deixou de acenar.
Restam aqueles degraus que se descem para um abismo sempre desconhecido.
O envelope que tem ao seu lado,
guarda outras recordações, ainda mais duras, menos perdoáveis. Um envelope
amarelo, dos antigos, daquele tempo onde as fotografias se partilhavam com o
homem por trás do balcão, o mesmo que revelava aos dias as imagens que eram já
lembranças. O envelope a ouvir o galopar da ondulação sobre as paredes de
musgo, o porto curto sem barcos.
Já vai na terceira volta das mesmas
quatro fotografias. A imagem desfocada de uma auto fotografia, um espelho com
colares pendurados, artesanato enrodilhado, um reflexo de uma lingerie azul
turquesa como só a ela encontrava, o rosto desfocado e ainda assim um olhar tão
solitariamente perdido, o peito quase descoberto a ter sinais de uma mão que o
adornava pelas noites dentro, as barriga lisa onde dormir era o término de uma
adoração sem fronteiras. Uma outra imagem, o olhar lateral, quase de soslaio
para um fotografo que não lhe interessava, um vestido festivo verde e violeta,
o peito perto dos braços de fineza pura, o cabelo a alisar-se no sopro terno do
vento, o mesmo rosto, os mesmos lábios de carne, o mesmo nariz de ornamentos
apaixonantes, a verga de uma cadeira que se perdeu no tempo. A terceira imagem,
as costas soltas, a despirem-se de uma camisola com marcas de verão, o cabelo
apanhado a desacreditar que um pescoço pudesse desencadear um amor
incomensurável, os livros de pedra de Melides, a Insustentável Leveza do Ser
sem páginas por abrir. Na ultima imagem, no ultimo virar das fotografias, a
praia da Comporta, um abandono das coisas materiais, uma toalha que os juntou,
ainda de aparelho nos dentes como se a infância soubesse sempre permanecer no
jeito que tinha, uma das poucas fotografias juntos, a mesma cor de pele e uma
nudez que nunca mais se repetiu.
-
Sempre foste muito bonita.
Ao
colocar as fotografias dentro do envelope amarelo, arrepende-se de nunca ter
envelhecido. Sente falta das conversas que se deixou esquecer, das noites em
que ouvia as teclas do computador no trabalho que a ouvia fazer, do cheiro dos
cobertores leopardo que se desenhavam quando adormeciam, de dormir, de dormir
sem o medo de se perderem.
Deixa
o rio para os amantes da noite e caminha na angustia do arrependimento. Ouve as
conversas alheias e o mundo inteiro não existe mais. Deixou de sentir faz
tempo, não há um mínimo de comoção a ruminar dentro, a réstia de enternecimento
perdeu-se entre um nevoeiro que se habituou a vasculhar.
Debaixo
do Padrão dos Descobrimentos a pequenez confunde-se com a longevidade de uma
eternidade que nunca existiu, dialoga consigo sobre uma frase que há dias lhe
mora no lápis, descuida-se nos passos que dá ao pisar a rosa dos ventos e
apercebe-se que deixou de andar sem pisar os riscos do chão, como fazia com
ela, mesmo que as mãos não se encontrassem, os pés nunca pisavam as falhas de
chão.
-
Pisaste todas as falhas desde que entraste na rosa dos ventos. – uma voz.
Ao olhar para a frente, encontra um
vestido de noiva completo, dentro dele, debaixo do véu, um rosto sem
expectativa, olhos de angustias desmedidas, lábios desconectados com a voz: uma
noiva que nunca chegou a casar.
O corpo volta-se de costas e
continua a caminhar, deixando o eco, o apontamento, no ar. A noiva arrepanha
caminho e o vestido comprido não deixa perceber se os pés pisão as falhas no
chão, como se voasse, como se flutuar fosse o preço a pagar pelo abandono de um
futuro que nunca se planeou.
Mais à frente, ao atravessar o túnel
de passagem para o jardim, ao som de uma harmónica silenciosa, debaixo de uma
escuridão muito apara além da noite, avista, no andar da noiva que nunca chegou
a casar, os pés negros, negros, descalços. Acompanha o andar trémulo e é quando
chega ao jardim que entende a noiva que nunca chegou a casar: morre devagar na
relva impiedosa.
Ao descalçar os ténis, arrisca
sentar-se. Não fala enquanto se ajeita na relva, e a noiva que nunca chegou a
casar não o interpela, nem uma única interrogação. Silêncio.
Encontram os olhares e deitam-se
debaixo de uma noite de arrependimentos. Estendem-se ao comprido e deitam-se de
frente um para o outro. Os olhos outrora desencontrados, a conhecerem-se no
longe de um tempo demasiado atrasado. As mãos côncavas a esconderem uma memória
adiantada.
-
Porque é que me deixaste sozinho?
- Porque é que me deixaste sozinha?
No vento, onde o peso das coisas é
tremendo, as fotografias a libertarem-se do envelope e as histórias todas a
perderem-se nas etapas da memória, as lembranças a movimentarem-se para a praia
da Comporta, no local exato onde os pés caminharam com medo do futuro, o
reflexo da noite à beira do mar a tornear corpos despidos, os mesmos corpos
ainda deitados a entreterem-se por caminhos que tinham direção. Naquela praia,
as fotografias a pousarem calmamente, para que tudo pudesse acontecer
novamente, como uma repetição que faz acontecer as coisas pelas razões menos
impróprias, para que tudo deixe de ter tempo.
"there´s no going back.If you are given a reprieve, I think its good to remenber how thin it is."
ResponderEliminar