O espaço entre as palavras


           


           Estou atrasado. Nunca chego cedo demais a lado nenhum. Sou demorado, perdido na certeza de nunca acertar com o tempo.
            Vou apresentar o meu primeiro livro e mesmo neste dia tudo é prematuro.
           
            Estou a entrar na Fnac, a primeira vez sem que procure os livros dos outros. Agora é o meu livro que venho procurar, encontrar.
            O meu editor, José Marques. Nome que demorei a decorar, pela importância que lhe dou, eu que nunca apreendo o nome das pessoas importantes. O meu editor perdido entre livros e música, a segurar uma edição limitada da coletânea dos inseguros UHF.

-Desculpe o atraso. Não foi o transito, fui eu que criei as filas pela minha solidão.

O José Marques embebido na poesia popular de uma banda portuguesa, quase folclore. A ouvir-me, a não perceber onde levará tanta solidão.
Olho em volta e as pessoas ainda não chegaram.

(Um homem quando se sente só, nunca espera ninguém.)

            Explico-me, ao homem que nunca pensei acreditar em mim, que talvez venham algumas pessoas e que a sala ficará composta. As cadeiras poucas, parecem demasiadas para a literatura que não tenho para dar. Sou menos porque nunca acreditei que algumas vez soubessem que existo.
            Tenho o olhar quase morto na cadeira que foi ajeitada para mim. Espero pelas pessoas. As pessoas a surgirem entre as estantes. Saúdam-me, sorriem como se eu pudesse escrever para elas. Regozijam-se com a capa do livro que povoa as bancas. Lêem o meu nome, na procura do meu ultimo nome, aquele que nunca terminou. São pessoas que não conhecem o lugar escuro e silencioso por onde nascem as minhas palavras. O meu nome que se deixou abandonar por outro nome, outra família. O meu nome a mentir em tudo aquilo que nunca nunca fui capaz.
            Vou cumprimentando todos. Rostos que choraram ao meu lado quando a melancolia-depressão me afundou na escrita. Os conhecedores da minha ausência. Lembranças que doem, que sempre doeram.
            Entre a saudade, um horizonte que termina num beijo e um abraço sincero. A prova de que está tudo a acontecer.
           
            (Nada acontece quando sozinhos.)

            Encontro pessoas que a memória tinha esquecido. Histórias tristes que queriam pensar. Abismo de ideias. Felicidade de outrora. Felicidade camuflada. Uma felicidade, nos rostos, que tarda em surgir. Uma ou outra felicidade sonhada para sobreviver.
            No espaço cordial entre os braços da gente, um rosto desconhecido. Um cabelo negro a guardar ventanias como um sopro longo, como um tornado pendente. Uma rapariga a lembrar-me a mais bonita palavra de todas: candidez. A palavra que me impede de escrever coisas melhores: candidez.
            Sou apresentado. E de toda uma vez, uma vergonha tímida evidente até para quem desconhece os meus olhos. Uma pausa e o esquecer do nome - Mar.... - tudo interrompido pelo gesto de tempo em falta pelo meu editor.

            O caminho até à cadeira de apresentação é um universo que desconhece os minutos e de como estamos sempre pendentes do tempo.
            Fala-se de mim na mesa. O editor. O Vasco Morgado. Falam que me descobriram. Que não gosto de lugares comuns. Falam coisas que não entendo. Eu sempre escrevi para não falar sozinho.
            Feitas as apresentações, olho por fim para a plateia. As coisas a acontecerem novamente, qual eterno retorno, qual rotunda da vida. A minha mãe e a vida adiada. O meu padrasto sem bigode a ser uma criança que nunca aprendeu a brincar. O meu avô a esquecer-se de morrer. O Pinto a acenar-me do fundo da rua sem saída. A minha sobrinha Madalena que ainda não imagina que vai nascer. O meu irmão com as luvas de boxe a fingir que luta contra a adolescência. A minha irmã a repensar os caminhos. O Fernando com uma bola debaixo do braço, a chumbar no 1ºciclo. O meu tio Adriano, com rosto de velho e mãos de menino, a convidar-me para ser infinito com ele. E no canto mais escondido da sala, eu. Estou a ver-me de cabelo comprido, muito mais novo, com os olhos pouco simétricos, lábios curtos com medo de aprender beijos, magro e sem fome, com vergonha de sorrir e de falar, a viver inteiramente nas prosas que me chegavam. Estou a ver-me e tenho medo de desiludir o menino que me olha do fundo da sala. Ele, eu, não sabe, não sabemos, nunca saberemos que nos fomos perdendo no tempo, que as palavras nunca nos irão resgatar. Nunca poderemos viver no mesmo tempo. Nunca nos vamos encontrar. A sala ainda está inteira e eu quero dizer-te tanta coisa.

(não corras por aí, vais desencontrar-te com a vida e não conhecerás os cheiros; não leias esse livro porque te cansarás das pessoas; não escrevas esse texto porque a poesia não existe fora de nós; não erres essa pergunta porque nunca serás professor; não percas o beijo nessa esquina, nesse muro; não penses na morte quando ela nem te conhece; não percas os sonhos à beira do mar.)

            Agradeço à minha mãe e ela sabe que nunca precisámos das palavras. Ela fingirá que as esqueceu. Eu farei de conta que nunca as disse. Agradeço sem me aperceber que a minha mãe chora todos os anos que já gastou.
            Explico o livro às pessoas que o desconhecem e logo a palavra mais bonita de todas: candidez. Procuro o rosto que decorei. Procura o nome que não apreendi. Descubro-a entre amigos. Uma beleza que escrevi tantas vezes, lábios que apenas sabem sorrir e os cabelos sempre no meio de um tornado que urge.
            Disfarço a atenção e finalizo com a frase que me apoquenta desde a infância: as pessoas perdem-se no tempo.
            Segue-se uma sessão de autógrafos que não faço a mínima ideia para que possa servir. Eu que não tenho nome de poeta: Herberto, Torga, Agostinho, Mourão-Ferreira, Pessanha. Uma fila imensa de livros e de mãos a segurar.
Quase perto, o rosto que teimo em não esquecer.
            Escrevo pequenos poemas para justificar a ausência de estética na letra.
            Surges muito imprevistamente, quase numa cadência não prometida. Estendes o livro, com a mesma vergonha tímida que te apresentei. Há um sorriso místico entre nós, uma racionalidade duvidosa quando me entregas o livro. Desacredito que possa ser escritor no momento rigoroso em que dizes o teu nome. Mariana.
            Quero explicar-te que, naqueles tremidos segundos, eu posso concordar com o nosso futuro Lobo Antunes “...são tão difíceis as palavras, e demorei anos a dar conta disso...”. Escrever-te sem te saber é tão impossível quanto a improbabilidade de te esperar todos estes anos. Falo-te em sonhos, como se soubesse os teus estão armadilhados para serem cumpridos, tal como Camus me contou.
            Foi muito breve o tempo ao teu lado.
            Quis procurar-te de imediato, mesmo ao virar de costas. Quis chamar-te mas tive medo que o futuro nunca fosse viável. Os teus lábios que só sabiam sorrir, lábios de literatura que fulminaram o acontecimento. Foste, ali mesmo, uma luz a iluminar-me num abandono que não queria.

            Nada mais aconteceu depois. Escrevi outros poemas e não te esqueci. Deixei de me ver na infância, somente porque não sabia o teu nome no passado. Esqueci o livro porque outro livro queria escrever. Um livro, com um espaço entre as palavras escritas e não-escritas, um espaço com o teu cheiro surdo, um espaço onde houvesse criação possível para que a palavra mais bonita de todas – candidez – fosse presença em todas as páginas. E tu serias a palavra mais bonita de todas. Na evidencia de só nós a entendermos.
           

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