Tudo desvanece





“It is a dream,
only a dream,
just a memorie
fading away.
Only a dream.”

Neil young


           
            Uma coragem controlada a rasgar o conto em que demorou a acordar. Uma cidade pequena, porque se via o seu fim, a olhar pela manhã brilhante. Devia ser de tarde, as pessoas andam mais depressa quando a tarde se prolonga. Talvez umas horas depois do almoço. Um viciado em cocaína barata passeia um jornal entre as duas mãos, diz que se vende, parece dizer que se vende numa língua que não percebe. Dois adolescentes que não se largam, faces espalmadas, mãos por partes improprias, saliva em excesso nas bocas desleixadas. Uma avó que ralha com o filho velho demais para ser neto, velho demais para se deixar levar por uma estalada, velho demais para se calçar sozinho. Um avô sereno a explicar o intento da fisga que mostra a dois miúdos abandonados pelos adultos que não entendem nada. Um policia cansado do transito que devia controlar. Um barbeiro, de pelo na venta e na tesoura, a julgar piropos por poemas. Um cabeleireiro pouco masculino, a ter cabelos de permanente, a querer ser mais mulher que as mulheres, de punho cerrado e unhas delicadas, postiças. Um carteiro sentado num degrau, a ler as cartas que devia entregar, a chorar comovido por algum desgosto projetado. Um doente mental, perdido na rua mas encontrado no trajeto interior, dialoga com um semáforo que respondo na mudança de cor. Um homem estátua que trocou a inércia pelo movimento quase perpétuo. Gente e mais gente a fazer qualquer coisa. Gente e mais gente sem a menor atenção ao estrangeiro que acordou agora mesmo.
            Repara em tudo o que gira em volta, nas pessoas, demasiadas caracterização. Sabe que não está a sonhar porque existem cores. Apenas os apaixonados sonham a cores. Sem olhar percebe que não tem relógio ou carteira para se orientar. Tem a roupa que desconhece o destinatário. Não se lembra de ter o cabelo tão grande. Talvez o sono tenha sido tão pesado que lhe cresceram os sonhos.
            Pergunta aos que vão passando: onde estou? Ninguém responde. Com gestos respondem, mas não é a mesma coisa, não se entendem. As pessoas e o Diogo não se entendem na troca de qualquer coisa que tarda em ser comunicação.
            Esquece a tentativa de se encontrar. Prefere ir descobrindo. Decide passear pela cidade. Parar num café para um café. Talvez aprenda a língua da cidade na partilha. Diz-se que se aprende mais num café que numa vida inteira de viagens. E por isso senta-se numa esplanada.
            Não passam muitos anos de luz até que um individuo escolha sentar-se ao seu lado. É o doente mental, com o nome num cartão ao peito: Macias. Traz uma bata que mostra ao mundo que se um homem nasce nu, assim deve permanecer. O doente mental, o Macias, ou suposto Macias, fala várias línguas, mistura países.
-       A saint about to fall, Dylan Thomas.
Fica com Dylan Thomas e despede-se do doente mental que não deixou cair o nome.
Expande a tarde sentado na esplanada, como se esperar fosse suficiente para que surgisse uma explicação. Mas continuava sem compreender  a insuficiência da tarde, da cidade, das pessoas, dos ruídos incertos.
Quando arrumava a cadeira dentro da mesa, ouviu as lágrimas do carteiro. Chegou-se perto. Sem pisar as cartas que se espalhavam ao comprido no chão. Sem desarrumar os envelopes vazios. Aproximou-se e fez companhia ao carteiro. Primeiro ficou apenas a observar o abrir de cada envelope, um a um, recortado pelo fio de uma navalha. Cada envelope a conter uma carta extensa, por vezes até mais folhas, cartas duplas. Conseguiu ler alguns nomes, porque os nomes não mudam com os países onde se arquitetam. E apercebia-se agora, que cada carta alimentava mais a angustia do carteiro, como se uma injeção de angustia nas veias do carteiro, como as cartas carregadas de angustia. Não conseguia olhar o carteiro nos olhos. O carteiro não parecia estar vivo. O carteiro tremia pelas mãos pelos braços pela pele. As cartas seguras na ausência de gravidade, a serem choradas muitas vezes mais do que se podia imaginar. O carteiro vestido de amargura.
Deixou o carteiro para trás, sem palavras. E seguiu o caminho das casas mais baixas. Talvez o caminho mais certo, o mais estreito, o mais certo. Seguiu em frente, amarrado ao passeio. Atrás de si, o cabeleireiro pouco masculino, a colocar uma perna sempre à frente de outra, quase uma diagonal de passerelle, quase modelo, quase mulher, quase mais mulher que as mulheres. O passeio era curto para tanta explosão hormonal. Nas esquinas, alguns ecos: maricas, mariconço, paneleiro, picolho, paneleirão. Tudo indiferente, todo ele indiferente. Ninguém tem o direito de avaliar os nossos sonhos. A ninguém é permitido invadir os nossos sonhos. O cabeleireiro pouco masculino a ultrapassar o Diogo na curva. A fazer-se notar pelo perfume barato, os sapatos mais altos que o lancil do passeio. Os dois completamente diferentes, em realidades duplicadas, o sonho e a noção de sonho.
O Diogo indiferente a tudo isto. A querer conhecer o final da rua. Com receio que a rua nunca terminasse.
A rua terminou quase onde começou, como se o mundo, redondo pelos homens que estudam, fosse tão curto que dois passos bastassem para que nos repetíssemos. A rua a começar e a terminar sempre. O ato irrepetível da vida na metáfora do mundo. O Diogo a terminar a rua e sem uma única ideia de onde ir, onde ultimar.
Uma dor de cabeça. Uma fulminante vontade de desmaiar. Um vulto de longe ou perto, a realidade a desfazer-se num desmaio de olhos tortos. As forças a serem músculos envelhecidos. A palma das mãos a encontrarem o chão, o passeio. As pernas a entortarem-se na demorada queda que ia dando. E o vulto longe e perto. Um velho de fisga na mão. Dois miúdos a mostrarem uma gargalhada sádica, negra, assombrada. O velho a correr pela rua, a fugir com os dois miúdos. Uma corrida que terminava e começava vezes e vezes. A rua a começar e a terminar. O mundo demasiado pequeno para os passos rápidos de quem corre.

Os olhos a abrirem. Os ouvidos a fecharem a melodia de Neil Young. 

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