A despedida




Não havia luz na sala. Escolheram o escuro para que as feições não fizessem crer outra coisa que não o símbolo das palavras. Tinham prometido há muito aquela conversa que se adiara desde um outro tempo que se haviam esquecido. Agora era tempo de calar os olhos e escolher as palavras certas para a definição mais absurda de todas.
            Não havia luz na sala.
            Preferiram deixar alguma distância. Ainda que o som da voz pudesse juntar os lábios. A distância escolhida não se lhes permitia retornar ao ponto de partida, anos antes, quando os segredos eram poucos. Os dois sabiam que o pouco espaço que pudesse existir entre o corpo de um e de outro nunca seria o bastante. Conheciam-se na antecipação do desejo. Desde que o sexo a primeira vez. Desde que o corpo um aquário de carne.
            Sem saberem para onde olhar na sala escura, ainda assim, sabiam que os olhos se encontravam. Quando duas pessoas se pertencem os olhares nunca se perdem. Por isso, na sala cada vez mais escura, mesmo quando alguma coisa procurada pela vista, era divinamente abençoada pela presença de uma pele que lhes pertencia. A pele salvou-os nas horas mais descuidadas. Não era só o cheiro mas também.
            O diálogo decorreu. Alguns gritos habituais entre ambos. E uma frase que os perseguia:
            - Nunca haverá um final para nós.
            Um e outro repetiram-se na frase, tantas vezes quanto podiam. Quando a repetiam, voltavam ao silêncio, à calma. Seguido, sempre seguido de um regresso:
            - Nunca haverá um final para nós.
            Quando conseguiam cortar o escuro com ternura, logo se perdiam na mágoa de se magoarem sem intenção.
            - Desculpa.
            - Desculpa.
            Num outro tempo fariam amor depois da palavra. Agora, nem isso restava. O escuro não autorizava. O escuro como um monstro que assusta o passado e não o estende pelo presente. O escuro que escondia a tatuagem que ele procurava antes do amor. Mas as mãos dele agora no vazio que não tem cor, a tentar o relevo que a pele dizia. Tanto carinho nos dedos e ela a esquivar-se muito leve entre tudo o que ocupava a sala.
            - Podes pedir desculpa, que me lembrarei de quando te escondeste. Lembrarei e não caberás no reino que demorei a construir dentro de mim. Mas podes pedir desculpa. Podes sempre pedir desculpa.
            Queriam olhar um para o outro.
            - Devias ter esperado por mim na rua do nosso desencontro. Eu teria aparecido. Devias ter esperado por mim.
           
            A luz na sala surgiu pela manhã ao abrir os cortinados e as janelas. Lá fora o passado tinha-se esquecido dos dois. Não restava um murmúrio. As flores artificiais que estranhamente decoravam a sala, murchavam porque a luz. Um dos dois fechou a porta depois de sair. O outro ficou virado para a janela. Sem rosto. Podia ser ela. Podia ser ele. Ambos desfeitos.
           
            Escreveram-se. Uma carta apenas. Escreveram a mesma carta e assinaram sem nome.

            “Se me perguntares porque escrevo, não haverá resposta suficiente. Escrevo como se a morte me perseguisse. Como se fossem as minhas ultimas recordações. Como se no precipício da vida pudesse deixar o meu eco. Escrevo para guardar as pessoas que vivem dentro de mim. Os lugares bonitos que urgem nas lembranças de quem falava com os olhos.
            Nunca pouparei a imaginação.
            Ainda que invente histórias. Ainda que nada aconteça no que tenho para contar. Mesmo assim, não pouparei a imaginação.
            Ler e acreditar é diferente. Nós, os dos livros, não acreditamos em nada. Queremos apenas viver no que não acreditamos. E depois de ler, escrevemos para igualar os poemas dos poetas. Queremos descrever a chuva sem lhe dar esse nome. Dizer do amor o que ele nunca foi. Fazer da longevidade a escassez.
            Por isso sei que me perguntarás porque escrevo.
            Eu escrevo para que a morte não determine o absoluto. Para ocultar dos que duvidam que nunca haverá vozes suficientes para calar a poesia.
            Escrevo para sentir o que ninguém me conseguiu fazer sentir.” 

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