Do Eusébio, moçambicano, português, do mundo.




vi os teus jogos pelos jornais. a descrição em pormenor da potência quase impossível do teu pontapé que tentei imitar tantas vezes. no parque infantil atrás da casa da minha avó, onde os velhos, de bagaço na mão, diziam como racistas:

- agora queres ser preto não?

o meu pontapé com a raiva da escravatura, com a generosidade de quem cresceu entre os iguais de todas as nações. a convidar a minha infância de todas as cores a juntar-se num jogo que nunca teve fim. a chamar pelo Zé Ilidio que não gostava de futebol mas que usava uma camisola com o teu nome. a assobiar para o Jorge d´Alice que tinha muito mais idade que a restante equipa, que se dizia ser o pantera negra desde os lábios até à ponta dos pés. a pedir a desmarcação do Filomeno que se importava mais com os escudos perdidos nos passeios, mas que arranjava maneira de teorizar sobre os fundamentos históricos do melhor jogador do mundo nascido em África.

e os velhos, de bagaço na mão, a serem cada vez mais racistas:

- qualquer dia os pretos mandam nisto!

no campo, nós ouvíamos muito pouco porque o futebol jogava-se de tronco nu e as regras tão poucas que a rebeldia ganhava uma ordem natural. às vezes pretos contra brancos, só para diferenciar melhor, só para ser mais simples, só para ser menos demorada a escolha.

os brancos perdiam sempre. afinal do outro lado o Jorge D´Alice tinha quase dois metros e era uma torre intransponível, com um remate muito semelhante àquele que o Eusébio havia feito no tempo em que não havia filmagens, nem patrocinios. o nosso Eusébio particular a marcar golos em catadupa e a acenar aos velhos de bagaço na mão.

- o cabrão do preto joga que se farta.

o jogo terminava quando os golos eram tantos que se perdia a conta. nesse momento era decidido que o arbitro havia apitado. recolhíamos aos balneários que se diferenciavam do campo apenas porque nos podíamos sentar em troncos. discutia-se o golo mais bonito. o Zé Ilidio, que não gostava de futebol, argumentava sempre que os golos mais bonitos são aqueles marcados de olhos fechados. e nós só nos sabíamos rir. 

e os velhos, de bagaço na mão:

- míudos, venham mas é beber uma limonada que amanhã há mais. 

e o racismo a terminar porque o futebol é outra coisa que nem sabemos bem o quê. o racismo a ser apenas uma palavra. o racismo a terminar num trago de limonada, entre os abraços de quem jogou e de quem viu. o racismo a terminar no aperto de mãos dos velhos ao Jorge D´Alice, entre os elogios de que o pantera negra havia de viver ali na rua.


ontem, ao saber da morte do rei Eusébio, não consegui deixar de me lembrar do Zé Ilidio, do Jorge D´Alice e do Filomeno, amigos da infância que se escondem num passado sem futuro. recordo-os na memória do grande Eusébio. agora que ele fechou os olhos, tenho a certeza de que o Zé Ilidio sempre soube tudo.

os golos mais bonitos são aqueles marcados de olhos fechados.

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