Lembrar depois




o papel de parede quase a metade, descarnado, rasgado pelos dias que partiste para o mar. 

(ainda não tive coragem de o colar de novo, não enquanto não estiveres)

as pequenas estatuetas de marfim que trouxeste da ultima vez que voltaste, estão dispostas na mesma ordem porque os teus dedos ainda marcados na linha de pó. algumas delas ainda lhes falta um pouco de marfim para serem completas.

(mas mesmo assim faltas tu Augusto)

estou deitada na minha cama e o crucifixo que prendeste na parede, com o prego mínimo, a pender meio de lado, a mostrar-me que até Jesus me abandonou. eu que sempre fui devota e até os pés beijava para que não se esquecesse de ti antes de mim. sim, antes tu que eu. é mais importante que sobrevivas ao mar e eu morrer de fome em terra. eu que fui devota a uma religião só porque a tua doce mãe no leito da morte quis que desses a mão a uma beata, que só nesses termos haveria de fechar os olhos e morrer.

(a tua doce mãe que olha do espelho)

as paredes a despirem-se e Jesus Cristo a sorrir de mãos feridas. por vezes, quando a noite é mais noite, ele desce da cruz e afaga-me o rosto. finge a tua voz e diz-me que o mar desta vez não venceu. passa como brisa nas minhas pernas que morrem lentamente de carnes secas. diz com a tua voz:

- Crisalda, meu outono, o mar não venceu.

e sobe de novo para a cruz, depois de deixar a tocar a pequena caixa de música a corda. a trepar pelo papel de parede na mesma cadencia que a música clássica sem pautas. e eu chego a chamar Augusto baixinho com o medo que não voltes a ouvir-me.

(Augusto. Augusto. Augusto.)

é quase vinte e cinco de dezembro. a porta da rua está destrancada para facilitar a tua chegada. nem precisas de tocar à campainha. podes até subir pela varanda como quando éramos meninos. bem sei que agora te custa subir qualquer coisa que não tenha cordas. por isso também deixei uma corda pendurada do chão à janela.

(Augusto meu amor, não me abandones nas ondas)

a televisão está acesa desde que deixaste as iscas por comer. pois bem, as batatas terminas sempre, mas as iscas, sempre foi comida de pobre e tu dizias que eras o homem mais rico da praceta, por minha causa, tudo pela tua Crisalda. 

deixei o filme do Sergio Leone, aquele de cowboys com o senhor que eu digo que talvez cheire ao mesmo que as tuas mãos. sim amor, o Charles Bronson. tantas vezes te disse que nem por ele eu te trocava. mas ficas a saber que nem agora, nem mesmo agora eu te troquei, a televisão está ligada mas eu estou deitada na cama. a televisão está sem som, por isso nem ouço o senhor que talvez tenha o cheiro das tuas mãos.

porque ainda não voltaste do mar Augusto? disseste que desta vez seria menos tempo. que não tinhas mais forças para combater. que agora havia mais marinheiros que marés. mas no meio das promessas, esqueceste-te que eu tinha consulta ontem. que nem referiste as minhas melhoras na última carta. não te lembraste de que este alto que tenho no peito podia ser pior que um ossos fora do sitio. que eu poderia morrer. que nem o Jesus que tenho pendurado na parede me poderia salvar se a doença dissesse o meu nome.

(tenho tanta falta de ti meu Augusto)

levanto-me da cama. passo pela sala e desligo a televisão. arrumo o resto das iscas no frigorifico. tiro o telefone do descanso. fecho a porta da entrada à chave. puxo a corda da varanda. tiro o menino Jesus da parede. deito-me novamente na cama. fecho os olhos e no escuro dos olhos cegos, vejo o mar. no fundo do mesmo mar, um pequeno barco, e tu, e tu meu amor, a acenares à tua Crisalda, a inventares ventos para que a pressa de chegarmos juntos ao mesmo lugar não se demore.




à minha avó Crisalda, que tenho pena de não me conseguir lembrar.

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