As crianças não contam os meses




Enquanto folheava o jornal, a fingir a leitura das notícias do futebol, envergonhado por ter escondido o livro de Pedro Paixão debaixo da areia, descobri à beira do mar plantado a criança que fui um dia.

Era verão, num mês que não sei bem qual, porque as crianças não contam os meses, nem lhes dão nomes, soletrando apenas pelo calor e pelo frio. Há o quente das férias. Há o frio da escola. Para as crianças, a praia acontece fora dos exercícios da matemática. Não há estações com nomes próprios. Há adjectivos para o que o céu lhes mostra. E para mim, que não me deixo crescer, o mês de Agosto ainda é um verão inacabado. Com outro nome sem nome.

Então assim encontrei-me aqui nesta praia. Cabelo liso, a escorregar para os olhos na distração de não querer ver os túneis debaixo do mar. Já naquela idade, com livros interiores que queria escrever, sobre a família Gama que fazia barulho a mais, misturando a língua portuguesa das asneiras com o léxico curto de um francês-velório. Livros dentro que o senhor inglês de corpo orangotango, a passear um esqueleto curvado nas rochas, talvez na esperança de ser levado pelo vento de um veleiro, ou de uma gaivota de plástico. 

(sempre soube que as palavras escritas me iriam servir um dia)

Mas hoje, está criança aqui ao lado do meu chapéu, igual ao que fui, um pouco mais alegre, um pouco mais distraída, a empurrar uma bola com o pai

(e assim a dizer que não sou eu)

a dizer pai, com a meninice própria de quem sabe que não existe outro semelhante. A enterrar as pernas ainda curtas na areia que se desfaz devagarinho, a cair com o rosto a pentear a espuma do mar, e debaixo de água, sem que os outros a ouçam, a dizer mais uma vez pai.

(eu ouvi)

E enquanto escrevo, cheio de candidez, sei que nunca me deixarei crescer, não enquanto o verão não tiver nome, não enquanto a família gama continuar a fazer barulho, não enquanto o senhor inglês de corpo orangotango esperar pelo veleiro ou pela gaivota que tardam em passar.

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