As linhas do horizonte




“Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira
e a eternidade das mãos.”
.
Herberto Hélder


        Vou rompendo numa conversa com palavras por conquistar, utilizando uma língua morta, comunicável, mas ainda assim desaparecida do mapa histórico da existência humana. Rasgo verbos e adjectivos em busca do que ainda não foi dito, sílabas concretas que ninguém ousou criar. Busco um poeta sem rima mas com base concreta, resistente às falácias da comunicação terrestre. Visto-me de preto e tenho as cores das estações a cobrirem o meu fardo de poeta. Sou poeta e tenho o mar nas mãos. Sou escritor e os malmequeres existem nos meus espaços.
        Ouvir-te descalça, sem importância dos tremendos vidros que possas pisar. És a totalidade da minha concepção, real, provável, inocente e eu quero ouvir a tua voz descalça.
        Um pescador atira na linha imaginária do horizonte, a linha conduz a sua transparência rumo ao céu e ao mar, perde-se na força do punho, o pescador perde a linha e nem o crepúsculo oferece ajuda ao velho amigo do sal.
        Dois corpos sentados na beira de um impensável mar, conversam, talvez sejamos nós, talvez sejam amantes, errantes, mas amantes. Conversam os grãos de areia. Enterram os pés no frio infirmado dos grãos de areia. Naquela ondulação terrestre sabem que um e outro se complementam, sabem porque o sítio mais provável para um e outro existirem é mesmo ali, na praia, na beira, no mar, na areia, no crepúsculo.
        Existem vários horizontes. As linhas dos horizontes são gémeas. O céu e o mar. O mar e a terra. A terra e os pés dos amantes. Os amantes e as palavras.
        Adiante, onde a areia se forma duna está um corpo torneado pelas mãos de um esculpir magistral. Falta vento, falta uma aragem repentina. Os fios infortunados de cabelo sacodem o pescoço, saboreiam as costas e oscilam entre os olhos e a boca de uma mulher de ilusão.
        Eu vejo. Eu estou para lá da duna e da praia, estou muito além da demência longitudinal, aproximo-me em passos olhados e vidrados. A minha presença é a brisa que lhe branda os cabelos desatinados. Quero envolve-la e ascender numa proximidade mística.
        Mas estou muito além da minha voz de poeta.
        Ela tem os braços cruzados, sofre com a ausência da brisa arrefecida, cumpre o sôfrego auto de se voltar de costas para o mar. Não percebe a minha presença mas sabe que ali estou, sabe que eu sinto os seus braços nos meus. Despenteada pela roupa seca sabe que eu existo naquela praia de amantes e de velhos amantes do mar. Mas continuamente igual a si própria, permanece de braços cruzados, pernas morenas, descalça.
        Não falamos e é o vento que transpira uma melodia de violino, visita o nosso ouvido, fala, pensa, comunica o nosso enlace final. É o vento que permite que eu a abrace ternamente. O meu corpo sente o dela e delicadamente tenho a barriga e um tecido colado nas minhas mãos, e cheiro-a. Sinto um aroma no seu pescoço despido, não sei se é do sal, se do cabelo, se do amor. Os meus olhos terminam o momento na escuridão e só acontece o cheiro, o seu cheiro dentro de mim. Volto ao mundo, volto a abrir os olhos e agora somos um. Pertencemos às dunas à praia à areia ao mar ao sal ao horizonte. Somos agora uma linha de horizonte. Somos o melhor do amor. Somos dois corpos agasalhados. Somos os lábios que se encontram se sentem. Somos o término e o recomeço. Somos somente.
       
        Grita o crepúsculo no fundo da rua salgada. Clama nas linhas intermédias da nossa imaginação a voz de Cesariny, de Herberto, de Pessoa, da Sophia, do Peixoto. No fundo do mais fundo de nós, geme um violino do Leão na sábia inocência de quem sente que foi imaginado.
        O horizonte desaparece mas nos ficamos. Agora as nossas mãos já se podem segurar sem o medo de se partirem.

Comentários

  1. bernardo, esta página é-me verdadeiramente inquietante.
    gosto de ler-te. gosto imenso.
    diz também herberto que "os espelhos são a invenção mais impura".
    revejo-me tanto no que por aqui leio [silenciosamente e nas pontitas dos pés, descalços] que chego a sentir remorsos por me sentir intrometida.
    fascinante, esta carta de amor, como todas as outras.
    bem feliz, "o objecto" deste amor.
    abraço.

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  2. Muito obrigado.
    Acho que é também por isso que vou escrevendo, para que alguém possa ler.
    Não sei quem és ou se nos conhecemos, mas vai aparecendo que escreverei mais.
    Beijinhos

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