Faz acontecer

      

       Foi uma correria de inicio de noite. Chovia água quente no meu cérebro enquanto planeava os passos seguintes. Deslizou uma toalha bafienta sobre o meu corpo. Vestia roupas. Calcei os ténis azuis e atacadores formaram-se sozinhos no perfume que ardia no meu pescoço. Um pequeno casaco cinzento falava com os botões que caiam sobre os pequenos losangos. Estava numa rapidez de minutos na pressa de ouvir novamente os meus ouvidos cegos. Saí depois para a rua. Estava frio. O Inverno tremia nas árvores despidas e eu curava o frio com um pequeno casaco cinzento. Saí para a rua.
        Coloquei no meu carro, no silêncio assombroso do meu carro, coloquei um ambiente musical, pensei em ti, colaborava com a música e cantava e pensava em ti. O meu carro era um concerto de Coliseu. A lâmpada fundida do tecto do meu carro era uma escuridão de velas apagadas. Mas a música trazia luz, as vozes eram as chamas, as palavras eram a lareira luzidia que faltava na escuridão. Pensava em ti sem querer e sem saber. Em ti pensava porque podias ser a minha companhia e eras apenas o meu lembrar. Tu, todo o meu pensamento.
        Desliguei o motor com o despertar de uma chave. Bati com a porta e atrás de mim voltou a ficar o silêncio. A música veio comigo. As vozes saíram comigo e o carro ficou sozinho.
        Desci dois degraus e avistei pessoas. Um vidro separava as pessoas de mim e eu continuei a ver uma multidão. Três corpos estavam sentados numa exposição de café. Conversavam sobre o café e sobre música. Entre as três pessoas, estava uma outra pessoa, eras tu. Tu, miraculosa, sentada sem falar de música ou de café. Aguardavas a tua vez de falar e ajeitavas as costas na cadeira. Eu entrei sem pestanejar, estava sorridente porque olhava para o teu ajeitar de costas. Foi quando cumprimentei todos os corpos presentes que reparei que sorria tardiamente para ti. Como se o tarde fosse ser estúpido, como se o meu sorriso denunciasse uma pequena paixão por ti. Mas troquei olhares com ninguém, tentei roubar o teu rosto enquanto te beijava as faces, mas fiquei aquém. Estava surpreendido. Não sabia que também virias. Mas estava feliz por aquele lugar pertencer-te. Falei-te. Falaste-me.
        Saímos juntos. Os três que já lá estavam, tu, eu, e outra pessoa que tinha acabado de chegar. Éramos seis. Éramos muitos quando para mim bastava que fosses tu e eu. Mas continuava contente. Tu e eu não deixávamos de ser os dois, havia mais gente, mas eu e tu seríamos sempre dois.
       
        Chegámos ao Coliseu. Era um Coliseu real, com barulho de sussurros, com passos de mil Homens sobre uma carpete colorida. Uma escadaria enfeitava a sinceridade de um lugar de cultura.
        Juntos, os quatro, eu e tu. Subimos a escadaria imensa e descolámos numa alegria volumosa. Sabíamos que o escuro nos iria separar. Entraríamos para salas diferentes, mas pensava que nunca deixaríamos de ser eu e tu. No Coliseu, eu sabia que seriamos sempre os dois a ouvir a mesma música, o mesmo violino, o mesmo acordeão, a mesma voz, o mesmo piano.
       
        Já estávamos em extremos opostos do Coliseu. Eu estava numa altura longe da tua. De pé, de pernas esticadas, acobardava as forças com a vontade de saltar para junto de ti. Tu estavas inerte, no teu lugar marcado, no escuro de um camarote, sentada e longe do meu silêncio de timidez. Estávamos longe. Eu julgava-te perto. Tu longe. Eu perto e tu onde os meus olhos te podiam sempre encontrar.

        O espectáculo já se fazia ouvir. Era Rodrigo Leão quem orquestrava todo o barulho que se transformava em melodia. Sentado junto a um piano de cauda, ele era o ensaísta do meu debate filosófico. Ele era a ligação que pensava ter contigo. Por ele passava toda a paixão desenfreada que sabia sentir por ti, mesmo lá de cima, onde os pássaros não chegavam, eu sentia uma verdadeira coisa por ti, algo grandioso, impagável, intratável, abstracto, concreto. Eu todo era paixão por ti. O Coliseu acolhia uma paixão maior porque as milhares de pessoas que lá se sentavam a ouvir Rodrigo Leão, eram pequenas, eram diminutas, porque eu estava apaixonado por ti e do espaço só restava o que eu abarcava por ti. A paixão escrevia o teu nome e a tinta era eu.
        O concerto corria. Aconteciam várias músicas e o tempo passava sem tu estares perto de mim. Naquele momento, tu eras como o fumo de um cigarro que existe e depois desaparece. Algo que não podia tocar, algo que existia e deixava logo de existir. Mas eu guardava-te. Eu guardo-te.

        No fim do concerto, na saída do Coliseu, o Inverno acontecia novamente. O meu casaco cinzento não me protegia do frio. Os losangos do meu casaco não faziam aquecer. Mas eu não me importava porque sabia que os meus pés caminhavam junto aos teus. Mesmo sem ouvir muito a tua voz, eu conseguia falar contigo, na ausência de palavras eu inventava-as, colocava o amor na minha boca e dizia-o ao teu ouvido, mesmo sabendo que ainda não acreditavas, mesmo sabendo que não ouvias bem.
        Ao longe, com um metro de distância, eu cheirava os teus cabelos que desenhavam curvas correctas, ondulando sobre os teus ombros e guardando o teu rosto dos meus olhos. E eu queria muito que naquela noite os teus olhos vissem os meus, eu desejava muito que os teus olhos soubessem que eu existia. Esperei. Esperei que te voltasses para mim. A timidez fez-me sonhar mas não me fez chamar por ti. Ficou o silêncio no Inverno. As palavras não aconteceram como o Inverno e tu não me voltaste a ouvir. Mas os meus lábios soletraram a palavra amor. Amor, a-m-o-r.
       
        Sem palavras, sem música, sem nada, despedi-me de ti. Acreditando que muito haveria ainda de acontecer. O Inverno voltaria, as palavras sairiam de mim, o teu cabelo voltaria a ondular no teu ombro, tu voltarias a sorrir, e eu, eu conseguiria abraçar-te enquanto te pedia todos os dias de amanhã.

Comentários

  1. por vezes as palavras são vãs paea traduzir sentires.
    eu, por exemplo, não as encontro, muitas vezes.
    claro que o inverno voltará, o teu pequeno casaco se fará enorme para aquecer todos os amanhãs que te pertencem.
    abraço, Bernardo.

    p.s. Rodrigo Leão, uma escolha maravilhosa.
    Maria.

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  2. Obrigado Maria. Vai aparecendo por aqui. Beijos

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