Sombras que permanecem



        Os lugares estão vazios, um espaço entre a ausência de pessoas, um parapeito almofadado que segura a leveza de dois corpos que julgam a sala pela negrura das luzes desfeitas. Sentamo-nos. Sento-me ao teu lado esquerdo, a minha desculpa é a suficiente, a minha surdez garante que é ali que devo ficar e, tu cedes a minha timidez com um gesto de quem admira a sinceridade. Sentamo-nos. O filme decorre antes mesmo de começar.
        A vida poética de alguém recomeça quando se ouvem palavras em francês que nunca estarão gastas, porque quando a musicalidade envolve uma língua, as palavras nunca estarão gastas. Tu guardavas a minha companhia e eu soube que nós nunca estaríamos gastos. Haverá sempre poesia entre nós. Soube-o no reflexo das luzes de emergência, sempre que de soslaio, olhava a tua presença, o teu rosto, a tua concentração.
        Je t´aime.
        Je t´aime.
        Ouço o único francês que entendo, na ingenuidade prematura de um poeta encontro um gosto comum, o teu, o meu, uma escolha nossa e a perdição espontânea dos olhares que abotoamos entre nós.
        Faz algum escuro dentro da sala, sempre que na imagem se encontram as cores ou se desfazem as cores, faz algum escuro. Nesses breves instantes a minha mão julga poder encontrar a tua. Mas os meus dedos têm medo que fujas. As minhas mãos são sonhos de muitos anos e os meus dedos a cobardia de mil homens. Tenho o pulso fortemente em crescendo, desafiando um apelo ao teu toque, mas o medo, sempre o medo de que não penses o mesmo que eu, o medo da tua fuga de mim.
        As luzes de emergência continuam a incidir sobre a tua face esquerda e um breve sorriso ordena que eu seja corajoso. Esboças um movimento de contentamento. Respiro fundo, suavemente sem o perceberes, ganho forças, repito para dentro que é agora, é agora que ficas comigo. Olho para ti e peço um segurar, um braço perto da minha camisola e a tua mão junto à minha. Cedes, timidamente, mas ofereces a tua sombra à minha sombra, e na parede que reflecte as nossas sombras a darem as mãos eu acredito ver a nossa adoração.
        O poeta francês continua a coordenar as cores de um amor carnal, joga com um piano noite dentro, inventa baladas e palavras trabalhadas, fuma incessantemente e toma o boémio como singularidade, degrada-se em vielas de loucura e cada vez o ouço melhor. Tenho as teclas brancas e negras retocadas por Serge no meu ritmo, mas o que me apraz mais naquela hora são as tuas mãos e a tua pele alisada do meu toque. Deixou de me importar o tamanho das palavras, naquele momento sou eu e a tua mão. Quero também beijar-te. Quero também abraçar-te. Quero também suavizar o teu rosto e beijar-te novamente. Quero beijar-te.
        Fico-me silenciosamente. Espero o final de vida de uma vida heróica e apresso-me a guardar o teu cheiro. Já o tenho comigo. Sei para onde o vou levar, onde o vou guardar, é meu e eu quero-te pertencer. Sou teu naquela sala e quero pedir-te para que me guardes.
        As luzes voltaram mas nós ficámos no pardo das nossas mãos. Inocentes como adolescentes que descobrem que o sexo é amor. Cândidos a quem o amor faz falta e é preciso. Amorosos. As nossas mãos entrelaçadas são borboletas que voam com cores diferentes mas com o mesmo timbre. Somos aquele momento.
        Saímos pela porta de emergência sem uma única palavra pensada e quando olho para trás, vejo na parede as nossas sombras juntas, como se dar as mãos fosse a coisa mais bonita que alguma vez tivesse feito.

Comentários

  1. e é, a coisa mais bonita!
    quando se dão as mãos [não quaisquer mãos], a gente sente que a vida circula entre e por elas em movimento redondo...
    que linda a tua carta :)

    beijo.

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