Vermelho bolchevique




“Há pessoas mais felizes que tu, que bebem água da torneira.”

        Ela tinha mais idade do que ele, mais corpo e maior inteligência. Falava de coisas com muito mais tempo do que ele. O léxico era trabalhado como o futuro, como o progresso.
        Ele via-a à distância de um palmo, por entre uma parede transparente.
As palavras surgiam escritas no ar. Como letras móveis, pegava-as. Segurava as palavras e não as entendia. Apanhava a mobilidade e a construção das palavras e ao mesmo tempo que as memorizava, escrevia-as num papel morto. Agora seriam as suas palavras. A sua voz rezava-as como se as entendesse, mas eram palavras opacas, sem sentido, enterradas num cemitério de entendimento.
Vestia calças pretas e casaco abotoado, vermelho, um vermelho bolchevique.
Fumava o seu corpo, as suas pernas informes, o seu escadeado olhar. Fumava como se a beija-se e não sabia se ela gostaria de um beijo seu vindo de lado algum.
Enquanto a imaginava atravessando a parede transparente, desconfiava se ela poderia também pensá-lo.
Estava quase embriagado por um vinho que chorava desde o rebordo do copo, cheio para ser bebido.
Do seu lugar avistava uma bandeira, sem S, descaída e erguida. Sonhava o seu corpo na cama de pregos, a contorcer-se de prazer, a inventar posições de sonhos lascivos.

“Há pessoas mais felizes que tu, que bebem água da torneira.”

        Tremia, por dentro tremia de sensatez e de alguma timidez. Queria ousar um sorriso descabido. Mas nada era solto, nem mesmo um gesto de braços. Tremia. Não era frio. Enlouquecia pelo chão flutuante e fantasiava um livro.
        Escrevia no papel morto, um pacote de açúcar agora um pacote de nada. Queria enche-lo, recheá-lo de si e das pernas dela.
        Que desgraça maior seria não falar com ela. Que erro correria se o seu autor não chamasse como as letras móveis da sua loucura. Fala. Pensa. Faz.
        Ela penteava um curvar de pernas, entrelaçava-se em si mesma e ele sabia que podia confiar no seu aspecto. Fala. Pensa. Faz.
        O vinho pedia presença. Tinha medo do efeito do álcool. Faria do medo bravura, mas por outra estancia comovia-o demasiado e talvez o fizesse chorar. Não queria ser triste. Sê forte. Já chega de mágoa. Cumpre-te sem avariar o temeroso.
Ela levanta-se. 
O negro das suas calças era de um negro esbranquiçado, uma ganga brilhante. Paradoxos, tal como ele temia. Não era só o léxico ou a cor, tudo se formava diferente dentro dele vindo da imagem exterior.

“Há pessoa mais felizes que tu, que bebem água da torneira.”

        Brotava do seu efeito sonoro uma frase, um misto de palavras que não faziam lógica com o pormenor ínfimo da natureza mãe. Ele não entendia. Queria, mas não conseguia.
        Voar. O que seria voar senão retirar os pés do chão e não voltar. Enganar a gravidade e não voltar. Beber água e uma força invisível ordenar o liquido até ao inferior do corpo.
        Talvez tudo fosse poesia. Ele previra as palavras ligadas, mas assim, elas eram inertes e vazias.
        Percebeu enfim.
        Ela sacudiu-o sem o olhar, sem nenhum olhar. Pousou um livro na sua mesa mas não deixou um olhar. “Eu fui o que foste”. Autor desconhecido.

“Há pessoa mais felizes que tu, que bebem água da torneira.”

        Também ele saiu da mesa sem nenhum olhar. Colocou o livro no saco que pesava de outros tantos livros. Perdeu-o.
        Não soube, nem nunca saberá quem foi o anónimo, mas daí em diante, nunca mais ousou beber um gole de água.

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