O último dia

        

O Adriano começa o seu último dia sem rancor. A manhã crepita cruelmente desde as suas varizes de longevidade. A sua cama cheira a muitas mulheres deixadas para trás. Os seus cobertores cospem mentiras e verdades como se fossem vida. O seu colchão, virado a cada estação, perdeu o sentido nas palmas que o foram sentindo. O seu despertador avisa que é o seu último dia, ensurdecedor, avisa que é a última vez que o Adriano irá acordar.
As suas mãos suavizam a sua têmpora, a sua cavidade ocular, as suas rugas miseráveis. Esconde o seu rosto da manhã porque sabe que não haverá mais manhãs. Rouba a luz dos olhos porque é o seu último dia.
Desde o quarto até à cozinha são milhares de quilómetros sem perdão. A mesa precaveu-se e está entulhada de pinturas de tribos que ali se sentaram. As cadeiras estão dispostas para muitas pessoas, porém, sempre foram sozinhas. Nunca houve gente suficiente para que fossem úteis.
O Adriano rompe pela manhã sem amargura alguma, sabe bem que a casa está sozinha, mesmo com ele, a casa vai sempre ser sozinha.
Olha para o frigorífico. Estão lá desenhos de crianças. Já não identifica quem os desenhou, tem apenas a certeza absoluta que foram as crianças que escolheram o Sol azul e o Céu verde. Os desenhos que estão afixados por ímanes estão por ali há demasiado tempo. São memórias que não se lembra, são fragmentos de tempo que se vão perdendo na acalmia dos dias.
Ao voltar para o quarto, o Adriano terá de ultrapassar o corredor, terá de ultrapassar as fotografias expostas, terá de ultrapassar as lágrimas de quem já se perdeu. Pára.
Olha fixamente para o retrato em que finge um sorriso enternecido. Tem uma noiva ao seu lado e a largura do seu fascínio é maior do que a mentira dos cristãos. Tem vestido um fato de uma classe que sempre gostou. Tem calçado uns sapatos que brilham até mesmo agora que a história os imagina. Tem uma flor na mão esquerda, a flor tem pétalas arrasadas no chão. A sua mão aperta de tal maneira a flor que a sua cara desperta um esgar envergonhado. Na extensão da flor estão algumas lágrimas que guardou. Ao seu lado está a sua noiva. Ao lado da sua noiva, ele carrega uma tristeza que não se compra. A noiva é de tal maneira bonita que quase o engana agora que segura o retrato. Mas ele sabe que não. O Adriano tem na experiencia das mãos a convicção de que as flores não deviam ser apertadas daquela maneira.
Pousa o retrato.
O corredor fica para trás. Vai ficando cada vez mais para trás.
Pela porta que range, a porta do seu quarto, penetra cheio de pressa e não consegue impedir o olhar cínico da criança que o controla desde a sua mesa-de-cabeceira. É um rapaz, talvez um menino, talvez uma infância. Olha-o com um cinismo tal, que não consegue impedir a mágoa de o visitar. Aquele rapaz, aquele menino, aquela infância, entende perfeitamente porque é fulminado daquela forma.
Os olhos sempre lhe pareceram uma forma de arte de enganos, sempre preferiu os lábios, esses que nunca mentem no segredo de mil beijos.
Mas aquele olhar guarda marés de desenganos, de caminhos desviantes, de ligações que fugiram, de amores desmentidos, de encontros que nunca se deram.
Cerra os punhos. O Adriano junta os dedos de velhice e treme de força. Quer regressar. Quer completar o que nunca chegou a começar, fustigar os erros que cometeu, contornar as traições do tempo e da espera, ser mais do que foi sendo, completar-se quando um dia se desmanchou. Os punhos cerrados têm a magnitude da terra em chamas.
Mas o Adriano já não tem a força de outrora, não lhe restam mais dias, nem tão pouco mais manhãs. Está comprometido com os dias do fim, como quem está comprometido com o amor.
Sai de casa com a sensação que deixou algo por fazer. Mas fecha a porta. O que ficou por fazer talvez alguém o termine por ele.
Enquanto caminha pela calçada, sujeitando os seus pés aos padrões do chão, pede clemência ao menino que deixou no retrato, pede perdão à noiva que nunca o perdoou, pede a si mesmo desculpa por nunca ter optado pela verdade.
Enquanto os seus pés se sujeitam aos padrões do chão, trauteia quase tombando, de um lado para o outro, como se os seus passos fossem siameses de toda a sua história.
Ao longe, na vertical dos horizontes, as pessoas saudavam o seu passeio matinal, nunca adivinhando que este era o último dia do Adriano. Diziam Bom dia. Diziam poemas sobre frio. Diziam ondas de prazer. Diziam a beleza de tantos Outonos.
E o Adriano. Como um violino estragado de Valentin Silvestrov. A cambalear pelos passeios com pinturas belas. O Adriano a provar que a vida é breve.
Mas os retratos que tinha em casa. Os retratos que contavam histórias. E o retrato que guardava no bolso da camisa. Esse retrato que só olhava quando queria chorar. A fotografia da mulher mais bonita do mundo. A reprodução em papel brilhante do amor que nunca conseguira triunfar. O rosto agora sem voz que nunca o abandonara. Os lábios que nunca beijara. A sua infinita paixão, essa que sempre duvidou que algum dia o pudesse visitar.

E deixou-se morrer no passeio, perto do banco de jardim onde um dia, na recordação do amor, conseguiu descobrir que a vida podia ter sido interminável.

Comentários

  1. Olá Bernardo :)
    relendo-te.
    guardo as palavras e deixo-te um som, daqueles que a mim me relaxam, espero que gostes. É jazz num clássico lindissimo.

    http://youtu.be/gJJ9hYq2rMI

    é que a vida pode ser interminável sim, enquanto cá andarmos. Belíssima esta tua prosa.

    beijinho.
    M.

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  2. Bernardo,

    Não são necessárias mais palavras...Muito bonita a tua prosa! Gostei

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  3. Bernardo,

    Muito bonito este teu texto.

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