Recuar no tempo





        Nos confins de um tempo indeterminado, estamos juntos. Sentados num passeio feito muro, como uma catarata de calçada que se deixa sentar por ténis antigos, calções de ganga, atacadores desleixados e cortes de cabelo promíscuos.
        Somos seis crianças que não sabiam a eternidade das mãos. Quatro rapazes e duas raparigas que se unificavam em família, mas que se perdiam por arvores genealógicas pendidas por fios imensos. Filhos, sobrinhos, netos e até afilhados de uma geração que não nos compreendia. Éramos crianças.
       
        Não me lembro se era uma manhã ou uma tarde. A lembrança é a preto e branco e os olhos não se fecham pelo brilho do sol e não se abrem para focar a lua. É tudo a preto e branco, até mesmo a nossa pele de meninos.

        Eu represento-me nessa lembrança com uma nitidez que já não se fabrica. Tenho as mãos sobre os meus joelhos despidos. Talvez esteja a esconder uma ferida de uma corrida mal calculada, ou porventura ensaio uma pose de liderança ingénua. Mas sou eu. Aquele rapaz sou eu e ele não sabe que eu o vejo daqui. O rapaz com as mãos sobre os joelhos não desconfia que eu me vou lembrar dele. O mesmo rapaz não calcula que vai crescer e sofrer, crescer e aprender, crescer e sorrir. Ele não pode imaginar que o tempo vai passar ao seu lado e tudo será passado ou futuro, tudo será completude de estados, tudo acontecerá como um raio que não sabe onde cair, tudo é ele e o Mundo.
        Ao olhar para mim, de cabelo liso a esconder-se dos olhos, arranjado para que estes possam ver os dias a acontecerem, não percebo como fiquei calvo e porque se perderam memórias. Ao olhar para mim, pergunto-me se tudo foi claro e se valeu a pena. Apetece até perguntar, porque estás a olhar para o único sitio onde ninguém olha.
        Mas eu não sei responder. Nesta imagem eu não sabia falar e as horas não existiam.
       
        E a minha irmã. E o meu irmão. Eles já eram mais crescidos do que eu e eu gosto deles. Desde que me lembro de mim que gosto deles. E quero dizer-lhes daqui, enquanto seguro esta imagem, que gosto muito deles e que a infância existiu com eles.
        O meu irmão olha para mim, ele sempre olhou por mim. O meu irmão já sorria para mim e encantava-me vê-lo a sorrir. Tenho a certeza. Ele tem uns calções iguais aos meus porque sempre me defendeu, sempre me protegeu. Ele tem o mesmo corte de cabelo que o meu e tem toda a importância. E ele olha para mim com uma ternura que se desfaz porque ainda hoje ao sorrir, ele permanece igual.
        E a minha irmã. Queria ouvir a voz dela desde esta imagem. Porque ela já sonhava para além do que era possível. Ela já tem a cara das suas filhas, o mesmíssimo jeito de olhar e de se sentar. A minha irmã já tem o nome das minhas sobrinhas debaixo da língua porque para ela o tempo é infinito e já se encontrou com a Carolina e com a Maria. Ela brinca com as filhas desde que os dentes de leite a abandonaram, desde que a magreza dela se desfazia em ossos. A Cristiana, que é a minha irmã, é uma mulher madura num corpo de menina mas tem já o fascínio por experienciar tudo o que não existe. Nesta fotografia, ela ainda vai a tempo de tudo. Hoje e amanhã, ela vai a tempo de tudo.
        Enquanto o meu olhar vai para uma direcção que me pergunto onde, o meu primo está cabisbaixo. O meu primo Gonçalo tem os olhos de vanguarda e a sua rebeldia inteligente faz com que esteja sentado de forma diferente dos outros. A sua existência sempre foi completamente diferente. Como se tivesse muitos anos à frente dos que soprou. Ele olha para o chão e na minha concepção de infância, há já lugar no pensamento para se ser escritor, filosofo ou psicólogo, e há também lugar para um revolucionário. E as suas pernas. O seu corpo pequeno, minúsculo. Encolhido e despenteado, o Gonçalo tem os olhos no vazio e os pés num campo de futebol. A sua expressão melancólica traduz a sua história, o seu fascínio perdido por festejos imaginários e um sorriso de malandro.
        Nesta fotografia, o meu primo e o meu irmão eram irmãos. Eu era secundário porque não sabia dizer o nome do meu irmão. Miro. Vadimiro. Vladimiro. Eles brilhavam na presença um do outro. A vida deles era um toque de campainha, uma subida de escadas, um abrir de porta, um brilho nos olhos, um sono que nunca veio, um dia como dias. Eles eram unha e carne e eu ainda era muito pequeno.
        E a minha prima. Era também ela muito pequena. Mas já falava. Foi desde essa pequenez que me ensinou as palavras para sobreviver. Sentados à porta da casa da minha avó, em explicações inexplicáveis, gestos falados e a descoberta das cores e das formas. A minha prima. Ela carrega uma bandolete desde o seu loiro e encaracolado cabelo. Tem uma aura de meninice e cresce tanto quanto eu. Somos gémeos de idade, mais mês, menos mês. Foram as tardes, entradas de rompante pela porta sempre aberta da nossa avó Ana, chás e torradas por tardes fora. Uma infância de lutas e de férias. A minha prima, nesta imagem onde tudo parecia começar e onde agora, tudo parece voltar a começar.
        Atrás de todos, o meu primo Tiago. De camisa aperaltada, de cabelo ao sabor e um vento inexistente, de óculos, um estilo dúbio de um ser humano que as marcas da memória quiseram que fosse fascinante. O meu primo Tiago sempre mais crescido que todos nós, porém, infantil, sempre infantil como ninguém. Também ele já não tem o corpo fragilizado, nem tão pouco a inocência dos verbos. Olha calmamente para um objecto que lhe ensinaram ser o guardador de memórias, e nunca poderia desconfiar que anos mais tarde, eu estaria a escrever sobre o olhar de tantos primos. Nem tão pouco idealizaria que ao seu lado, num outro tempo, pudessem caminhar com ele dois rapazolas que farão o mesmo percurso. O Lucas e o Vicente. Alegremente, percebo que o Tiago ainda é aquela criança de reinos, que no silêncio de pai vai observando as suas duas perfeições a brincar como outrora fazia com o irmão, com os primos.

        Pouso a fotografia no colo e encosto-me para trás. Retorno por breves instantes aquele dia que desconheço a data. Verto uma lágrima de uma tranquila saudade. E sem perceber onde desaguam as lágrimas, percebo a perfeição de tudo o que fazemos, e entre as vicissitudes dos encontros temporais, compreendo a fotografia e as pessoas e a razão pela qual eu voltaria a viver tudo novamente.  

Comentários

  1. é tão bom ter saudades, eu gosto.
    só temos saudades de quando fomos felizes, por isso viveriamos tudo novamente, num tempo em que tudo era mais simples e puro.
    gostei de ler-te. neste momento fez-me muito bem ler-te, recuperei um tanto de tranquilidade.
    é tudo tão sereno por aqui.
    devias escrever mais vezes.
    escreve.
    escreve sempre.
    beijo.
    M.

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  2. Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas ...
    Que já têm a forma do nosso corpo ...
    E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos
    mesmos lugares ...

    É o tempo da travessia ...
    E se não ousarmos fazê-la ...
    Teremos ficado ... para sempre ...
    À margem de nós mesmos...

    Fernando Pessoa

    É sempre bom ler os escritos onde te encontras!
    Muito bom o teu texto.

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  3. Adorei e chorei...Chorei a pensar em tudo o que escreveste e a recordar...e a desejar que nunca deixemos de ser assim ... assim, sempre juntos!

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