A intermitência da morte


   Metade da manhã já tinha passado por mim. Uma aula já tinha sido passada a ferro. Um rosto lavava o madrugador de acordar tarde. A vizinha que ouve televisão como se estivesse a olhar para um rádio antigo, acordara à pouco tempo. O Rodrigues da bomba de gasolina mexia na carteira como se de um movimento perpétuo se tratasse. A minha mãe já trabalhava há muitas horas seguidas. O meu carro estava parado. As ruas enchiam-me do fumo de dias que a poluição conta. Uma livraria abria portas e colocava os mais vendidos em destaque. A dona da livraria previra um dia de negócio fraco. A livraria era um silêncio oportuno.
   Eu caminhava para junto dos meus iguais, junto das crianças eu era uma delas, a correr com as suas pernas eu era uma criança. Brincávamos como invenções momentâneas, de um jogo para o outro o tempo não existia. O céu era claro. Estava uma claridade imensa que impedia os olhos abertos na sua totalidade. O suor trazia o sal desde o calor de mais um fim de manhã.
        Lá do fundo do recreio um amigo acenou. Não vinha feliz. Não estava feliz no meio de tantas crianças felizes. Vinha na minha direcção e não parou para brincar com nenhum adulto. Olhou para mim de olhos embargados. Falou:
        - Morreu. Já sabes que ele morreu?
        Parei de brincar. Pela primeira vez parei de brincar de manhã. Recordei o atravessar de uma jangada. Recordei pequenas memórias. Recordei a cegueira de um povo. Recordei a maior flor do mundo. No meio de tanta recordação, o Sol escondeu o rosto e chamou o frio e o vento, chamou o cinzento e levou as crianças para dentro da sala de aula.
   O recreio já era vazio no seu todo. O silêncio já não era silêncio. O coreto que fazia de Castelo, era agora, apenas uma casa sem paredes. E eu abraçava o meu amigo lembrando o factor vida, lembrando o limite da existência humana. E o fim pareceu-me tão curto.
  O meu carro estava parado. Abri a porta para sair. Em andamento, com o trânsito que parecia mais parado que nunca, ouvi as notícias no rádio. A confirmação não me deixou pensar que seria um erro de uma mentira. Ele estava morto. A escrita morria com ele. Os livros. As canetas de tinta gasta. Os rabiscos na ponta de uma folha solta. Tudo era já tarde. Era já tarde para alguém nascer.
 Quando desliguei o carro, já estava em casa a ouvir o choro da minha vizinha. A televisão continuava demasiado alta, mas não tão alta quanto o seu choro de perdição. Não consegui estar à porta a ouvir o choro da vizinha e das paredes e da televisão e do chão e da cozinha e do rádio.
   Ao descer as escadas ouvia os vizinhos, cada um no seu pranto, cada um com alguma memória de elefante.
  Fui a correr até à livraria. Passei fugazmente pelo senhor Rodrigues. Ele ainda mexia na carteira, ele ainda era todo o movimento que fazia da atmosfera até ao seu bolso. Não parei para apreciar os seus olhos embrulhados numa lágrima solitária. Mas ele chorou, eu vi que ele chorava.
  Chegando à livraria, passando pelos livros mais vendidos, não vi o que esperava. O seu rosto não estava em nenhuma capa. Não encontrei o velho com cara de poucos amigos na capa de nenhum livro. E fiquei contente. Talvez fosse mentira. Talvez tudo não passasse de uma invenção dos jornais que passam o tempo a mentir.
  Entrei e cumprimentei a menina de cabelos grisalhos que estava por trás da caixa. Sem pestanejar fui directo à secção de autores portugueses. Procurei por S. Não demorei a encontrar a sua obra completa em cores iguais. Escolhi um ao acaso e abri a primeira página. Estranho. Na primeira folha em branco estava o seu nome assinado. Assinado a lápis. A lápis de carvão. A simples carvão. E com o nome vinha um pequeno texto: - Ao meu amigo e camarada Valter.

  Abri a porta de saída. Não trouxera o livro comigo. Pousei na estante em que o tinha descoberto. Deixei no lugar a que pertencia. Pensei que um dia, talvez o Valter entrasse naquela livraria e fosse abrir o mesmo livro que eu descobrira no meio de tantos outros. Pensei que a pessoa, o Valter, neste dia de tristeza e saudade, talvez pensasse que gostaria de ouvir a voz do seu amigo, a voz como sempre nos habituámos a ouvi-la, através de letras, de palavras, de textos, de livros.

   Era tarde quando encontrei a minha mãe cansada de trabalhar. Era muito tarde quando a abracei e lhe disse em primeira mão:
   - Sabes mãe, acho que vou ter muitas saudades de uma pessoa que nunca conheci.


Ao José Saramago.

Comentários

  1. Maravilhoso. De novo maravilhoso. Eu estava em Lisboa no dia do funeral. Eu fui também ao funeral. De verdade. Era Copa do Mundo e o Brasil jogava. Jogava mal. Eu me remoí de tristezas de ver um corpo ali, inerte. A coroa de flores, como tantas, umas pessoas que passavam umas atrás das outras. A irônica coincidência de termos nos conhecido só na hora da morte. Até que a morte os una, ou os separe? Eu sentia a impotência diante dos meus olhos de vergonha. Uma vez ele esteve na minha universidade no Brasil. No tempo das impaciências eu não pude parar para vê-lo porque era hora do almoço. Estudávamos muito. Eu trabalhava. Eu perdi o único momento de vida dele ali, naquele auditório. Restaram uns quinze minutos, em que eu, prostrada diante do alaúde lhe fazia reverências póstumas. Acho que pedi baixinho para que um dia me tornasse escritora. Comentei em pensamento que era sua fã. A coisas que não se comem frias, tal como a dobrada à moda do Porto. O meu amor tinha morrido.

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  2. "Nunca se pode saber de antemão de que são capazes as pessoas, é preciso esperar, dar tempo ao tempo, o tempo é que manda, o tempo é o parceiro que está a jogar do outro lado da mesa e tem na mão todas as cartas do baralho, a nós compete-nos inventar os encartes com a vida..."

    José Saramago

    Este teu texto...Lindo, simplesmente, Lindo...
    Grande José de Sousa Saramago.

    R.

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