O medo






deixei a educação e fui morar para um hospital. abandonei as crianças na sala de aula, os desenhos que me caricaturavam, os lápis de cera que nunca soube segurar, os alunos que nunca foram meus. o portão da minha ultima escola fechou e em frente, sem que os olhos adivinhassem, uma porta de doentes convidou as minhas pernas a entrarem.


trabalho num hospital e tenho medo dos mortos. tenho vergonha 


das doenças que levam os velhos que perderam pessoas na fuga da memória. as doenças que pairam nos corredores e que se acumulam nas paredes sensibilizam-me de uma profunda carência, como se os velhos pudessem chorar mais quando no silêncio. 


trabalho num hospital e tenho medo que o sangue se arraste pela recepção adentro, e a doença terminal da vida seja uma musica que me faça dançar. medo das crianças que perdem cabelo e que ainda não vi. medo que o meu sorriso não seja suficiente. medo de ver o amor a padecer entre portas. 

deixei de ser professor e acordo todos os dias de manhã para encontrar pacientes que me obrigam a chamar clientes. pessoas que aparecem durante a noite a pedir-me por favor, por favor não me deixes partir. 
estou longe da morte no hospital. a sala onde tenho o computador não chega para ouvir o gemido da morte que nunca bate à porta. 


tenho medo de morrer. 


e no entanto, desde que me passeio no hospital que compreendo que a memória das coisas prevalece muito para lá da vida.

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