Não me vou esquecer de lembrar-te



não me vou esquecer de lembrar-te. mantenho a ideia cinzenta porque tem mesmo de ser. os outros anos em que as tentativas propunham lembranças, foram-se fugindo. 

já foi há tanto tempo. mas nunca se esquece quando alguém lê na cabeceira o Dominó Preto da Florbela Espanca, comovido, quase triste, a desejar um banco de espera como na história. e ainda assim, eu sei que foi há demasiado tempo. 

(contigo sou demasiado sentimental.) 

eu, que nunca sei as datas importantes, tenho calculado o tempo exacto do dia em que fechei a porta, a ouvir a tua alegria do outro lado. como se fosse um favor, como se tu cansada da minha presença, como se alguém já estivesse à espera para entrar e preencher o meu lugar à mesa. quando olhei para a tua varanda na despedida embarguei-me por não te ver de bicos de pé, a ver se o meu carro ainda estacionado em cima da passadeira, a ver se não era de vez. e todo eu a tremer com medo do futuro, com medo do medo.

ao entrar no carro, ainda estacionado em cima da passadeira, sossegou-me pensar que a minha mesa de cabeceira estaria sempre vazia porque o outro não sabia ler, nem sequer saberia distinguir um clássico russo de um contemporâneo chileno. sossegou-me saber que o outro não saberia escrever poemas a descer a Costa Vicentina. sossegou-me saber que o outro gostaria de filmes de acção e que te fartarias rapidamente de domingos sem cultura. sossegou-me saber que as músicas tocariam pelas paredes e que seria eu a surgir das sombras da noite, o meu rosto a sorrir de dentro das sombras da noite. sossegou-me ter a certeza de que o outro seria aborrecido e que sorririas novamente desde os pés da cama à procura das minhas anedotas. sossegou-me saber que o primeiro beijo aconteceu muitas vezes entre nós.

dormi no carro três noites seguidas. e o teu cheiro a continuar na mobilia que trazia guardada na mala. acabei por deitar tudo fora na segunda manhã. cansava-me a tua voz que teimava nos tapetes, nas loiças, nos sacos. a tua voz a serem todos os sons que ouvi em três dias.

(ao terceiro dia perdi-me de ti.)

foi quando te perdi que voltei à tua rua. os estores descidos. os vizinhos a dizerem que tinhas mudado para Benfica. o teu carro não estava no lugar à tua entrada. a senhora idosa a chamar-me do outro lado, a querer salvar-me. e eu que não tinha salvação porque me tinha perdido de ti.

- filho, ela foi para Benfica. não basta esperares.

e eu que sempre soube esperar. que nunca percebi como se deixa de esperar. a recordar as tuas palavras

- tu na cama és uma tristeza.

e nunca se esquece quando alguém nos assume que nao sabemos fazer amor. que não sabemos tocar no corpo. que não sabemos beijar com os olhos. que não sabemos tocar no orgasmo de uma mulher. 

- tu na cama és uma tristeza.

a fingires com a língua que tinhas vontade de sempre mais. a fechares as pernas por espasmos flutuantes. a puxares o cabelo para trás como se te viesses pelo couro cabeludo. a morderes os lábios entre o meu nome. a colocares o corpo em posições que a intriga juraria lascivas. a dizeres entre dentes

- tu na cama és uma tristeza.

e eu a aceitar-te de qualquer forma. a mergulhar na minha nulidade sentimental e querer aprender o que os livros nunca me puderam mostrar. a selar as minhas vontades para te ficar a ver fumar. e no entanto, as palavras a saírem constantes da tua voz. as mesmas palavras no terceiro dia quando me perdi de ti. as mesmas palavras quando as outras não eram o que tu sempre foste. as outras a serem demasiado bonitas, demasiado barulhentas, demasiado inteligentes, demasiado interessantes, demasiado qualquer coisa. as outras sempre a serem demais porque não eras tu. 

tu nunca serás outra pessoa. 

por isso não me vou esquecer de lembrar-te. mesmo agora que estou aqui debaixo da tua varanda, a decidir se entro no carro para voltar as costas de vez, para não voltar a ser uma tristeza na cama, para não voltar a ver-te fumar.

por isso não me vou esquecer de lembrar-te. mesmo que mudes para Benfica e a senhora idosa me chame do outro lado da rua para me dizer que não voltas. 

porque nunca me cansarei de esperar. eu que nunca percebi como se deixa de esperar.

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