O construidor de imaginações



e hoje que morre mais um artista tinhas tu de me importunar. não bastava esta fininho sofrimento de se ter perdido um arquitecto mais do que isso. o construidor de imaginações, com estas palavras incorrectas, sem corrigir nenhuma delas: o construidor de imaginações, Oscar Niemeyer. 

o oceano atravessado e uma nação a despedir-se de mais um homem, não mais do que isso, um homem que se estendeu pelo tempo e pelas palavras que envelhecem devagar.

o jornal aberto, feito leitor interessado de cultura, com as expressões devidas de quem se interroga sobre os assuntos grandes do universo. a mão esquerda a ler o desporto. a mão direita a sublinhar as citações em vácuo das personalidades intelectuais que os olhos abominam. 

o jornal aberto, a chorar também a morte do construidor de imaginações. 

no intervalo do almoço, ansioso pelas palavras cruzadas que teimava em não conseguir terminar. a olhar para o relógio e com cada vez mais pressa para voltar ao posto. o trabalho que me escolheu a acumular folhas. a cansar-me antes do recomeço. e o jornal ainda aberto. as palavras cruzadas por terminar e a solução a encarrilar-se totalmente no Óscar Niemeyer. 

tinhas mesmo de me importunar neste dia. à porta do colégio que vizinho do meu trabalho. a saires do carro com a pressa que sempre te critiquei. a abrires a porta de trás. a puxares de dentro um menino, filho teu que me tinha esquecido de lembrar o começo. a ouvires o menino a chorar porque te despedias

(como compreendo a saudade do teu filho)

a segurares no firme do teu braço, como se o futuro não te fugisse de dentro. a andares cheira de rigor de oficina. a seres mãe. a deixares o menino cheio de tristezas, de tempestades, à porta do colégio vizinho do meu trabalho. a voltares ao carro, a recuar sem virar costas, sempre o futuro que não te foge de dentro. a seres mãe. mesmo de braços vazios, a seres mãe. a parares antes mesmo de entrares no carro, a descobrires o meu corpo por trás do rosto do construidor de imaginações, por trás do jornal, por trás do futuro que não te fugia dentro. a sorrires de boca fechada, os lábios a inverterem o volume, o teu rosto inteiro a sobrar-me nas memórias. 

e eu feito adolescente orgulhoso, a esconder-me honradamente por trás do construidor de imaginações. a esconder-me nas palavras cruzadas. a escarafunchar coisas nos quadrados brancos e negros. sem o teu rigor de oficina. a desejar as folhas do trabalho. 

fechaste a porta do carro e atravessavas já a estrada que separava o colégio do meu trabalho. mas alguma coisa mais te moveu. algum passado mais antigo do que eu te moveu. algo mais tremendo do que eu te moveu. ou talvez tenha sido eu mesmo quem te moveu. 

não cheguei a saber o que te moveu. 

quando dei por mim estava a ouvir Simon and Garfunkel num passeio cheio de cores, cheio de liberdade extrema, cheio de drogas espalhadas pelo chão. a ouvir as vozes de quem estava feliz. vestido de roupas que esvoaçavam nas minhas pernas e me tocavam o queixo. 

quando me apercebi onde estava, olhei para o céu também ele cheio de cores, como se as flores brotassem das nuvens, como se os felizes pudessem iluminar-se de flores. olhei o céu e vi um homem cheio de idade, sentado na curva de um malmequer, a escrever em voz alta que todos os homens nasceram para serem construidores de imaginações. 


ao Oscar Niemeyer.

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