O manuscrito



perguntavam-me porque me faltava sempre alguém. não sabia responder. dizia que os livros me bastavam. que gostava mais de ser sozinho. que idolatrava o sossego nocturno.

depois veio um antepassado. muito velho. que me leu um manuscrito. escrito naquele século em que as pinturas. leu o manuscrito de uma assentada. lia decorado porque os olhos não baixavam. por vezes parava numa palavra. mais demorado porque as palavra por vezes difíceis.

no manuscrito, muitas vezes era possível ver a cor da tua pele. e a importância da pele sempre acima dos cheiros. muitas vezes, quase a ouvir-te sem a voz que pronuncia as letras mortas.

ouvi o antepassado até voltar a enrolar o manuscrito e entregar-me em mãos. disse que não voltaria, que não seria preciso. disse adeus e meia frase:

- nunca feches as mãos.

demorei muito tempo a conseguir andar. o caminho até ao trabalho pareciam milhas de país para país. e ao longo do caminho, a meia frase acompanhada pelo abrir e fechar das mãos. o que seria tudo aquilo senão algo escrito por mim. a qualquer momento a certeza de que iria voltar a mim. que estaria de volta à minha secretária e aos meus escritos. o antepassado a ser inventado por mim, para escrever sobre o que acontecia depressa.

mas não voltei a lado nenhum. não era turista da minha própria vida. estava a começar um dia de trabalho e não conseguia deixar o antepassado para trás. sempre o manuscrito sobre a mesa a relembrar-me

- nunca feches as mãos.

pedi o dia de folga e voltei para casa.

já em casa, olhei para o retrato aberto na mesa de cabeceira. um sorriso de Eugénio. uma existência profundamente poética. um olhar de prosa. um amor tão completo. um futuro de passadeira perdida no horizonte. o teu rosto capaz de escrever a história mais bonita de todas. e no fim do corredor da nossa casa, a tua voz a prometer a verdade do manuscrito:

- segura a minha mão amor.

guardei o manuscrito na arrecadação das coisas velhas e enquanto as minhas mãos pertenciam ao teu corpo, escolhi nunca mais as fechar.

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