Porque demoraste tanto amor





a grande cidade, por fim, adormeceu. apagaram-se as luzes e fez-se de manhã. com os sonâmbulos acordados e os varredores desempregados a deixarem as folhas espalhadas no chão. como se o vento pudesse varrer as histórias que o barulho da noite deixou escritas no parque.

saí cedo do apartamento. porque correr de manhã, antes dos  outros, é ler um livro completamente despido à janela.

quando entrei na curva que entrava pelo parque dentro, o meu passado não imaginaria que o tempo pudesse ficar tantas vezes no mesmo lugar. estava a correr e já não estava. estava a correr e o batimento interior estava parado. coloquei as mãos na cabeça e um sorriso inteiro a subir pelo tronco sem batimento. o meu coração em chamas.

estavas a olhar para mim. o teu olhar explicava que antes mesmo da curva que entra pelo parque dentro tu já olhavas para mim. o sono e o espanto de seres cheia de tanta coisa bonita.

- porque demoraste tanto tempo? eu que nasci antes e aguarda há mais anos do que aqueles que levam um sonho a acontecer. eu que te imagino deitado ao meu lado desde que o colo. aguardo a antecipar o teu sorriso miraculoso da vida. eu que acredito em Deus porque tu também não existias ainda e eu já sabia que cheiro tinha o teu corpo. que me tornei jornalista porque os jornais falam do mundo e nesse mesmo mundo tu poderias brotar das palavras. eu que poderia morrer agora mesmo com a certeza de que me irias buscar de volta.

sentei-me no degrau mais pequeno. não havia mais nada que pudesse afastar-me de ti. uma explosão no céu juraria eu que fosse a promessa do futuro brilhante que começava ali. sentei-me porque isso era ficar.

foste ficando mais próxima. como as palavras na linhas de um caderno.

- tu és tudo.

senti que fosse mesmo tudo.

um beijo antes mesmo de falarmos. perderíamos tempo. a vida inteira para falarmos deitados num passado que nunca acontecia antes de nós. e eras quente nos lábios. e o pequeno rasgo curioso nos teus olhos que os meus dedos haveriam de decorar. o teu cabelo que o vento não ousava levantar. e as tuas mãos pequenas a entrarem pelos bolsos porque eu ainda não sabia o calor.

- porque demoraste tanto amor?

eu que demoro sempre. que escrevia para ti na honra da literatura. a demorar-me nos contos porque no fim dos parágrafos tu acabavas. e logo um novo conto para te realizar. os contos não tinham nomes. soube sempre quem serias porque o amor é sempre um encontro tardio com o que se sonha.

e naquela tarde começou a vida. não mais deixei de fazer a curva que entrava pelo parque. nunca mais escrevi contos sem nome.  nunca mais me entristeci com os livros. começou a vida. os livros terminaram porque começou a vida. começaste tu.

começámos.  

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