Verdes anos



ela lia no cadeirão. 

- Penélope. gosto quando estás a ler no cadeirão.

o Antunes ficava deitado no sofá. esticado a aproveitar cada espaço do corpo que cabia dos pés à cabeça. passavam-se horas naquilo. a Penélope a ler os livros que escolhiam juntos no alfarrabista que guardava sempre os mais antigos e estragados para aquelas horas.

- hoje tenho aqui o Guerra e Paz, imperdível. vem até com os rabiscos do antigo dono. podem ler aqui a lápis: nunca se deve pedir desculpa. é insuficiente pedir desculpa.

escolhiam a noite. depois do telejornal. preparavam a sala cada vez mais cheia de livros, cada vez mais vazia de mobília. sempre que os livros chegavam à dezena, escolhiam um móvel para atirar pela janela. e atiravam mesmo pela janela, com os agradecimentos do amolador de facas que passaria na amanhã seguinte, a tocar harmónica, contente, na bicicleta que servia de camião de mudanças.

o Antunes deitava-se primeiro. só depois a Penelope se ajeitava no cadeirão, de cigarro pendurado, a virar a primeira página e a começar a leitura que os levaria para longe, para muito longe, onde a idade que os distanciava não fosse precisa.

tinham diferença de trinta anos certos. por essa razão nunca festejavam o aniversário um do outro. ambos faziam anos no dia quatro de setembro. era o único dia em que não se falavam. era o dia do tormento. da distancia cada vez mais distancia. o único dia em que não se falavam com medo do despedimento. 

no inicio dos tempos, a idade não lhes afligia. o Antunes com quinze anos. a Penelope com quarenta e cinco. um rapaz e uma mulher que se encontravam no autocarro que carregava gente do Marquês a Algés. sempre cheio, especialmente naquele dia. conheceram-se no aniversário. dia quatro de setembro. sentaram-se perto. o perfume de mulher experimentada e o suor clandestino de um rapaz que se cansa a pensar no que tem para viver. foi o livro que ele tinha nas mãos que resolveu a questão tímida dos olhos que se desviam sempre antes. Obra Poética de Jorge Luis Borges. 

- não tens idade para entender os poemas de Jorge Luis Borges.

o Antunes rapaz, estranhou e devolveu, olhos nos olhos:

"esta declaração é um segredo vedado pelo descuido e a inutilidade, segredo sem mistério ou juramento que apenas é assim por indiferença: hábitos de homens e de anoiteceres detêm-no e perserva-o o esquecimento, que é o modo mais pobre do mistério." 

Jorge Luis Borges.

não demorou muito para que a tarde fosse combinada por poemas. escolheram uma tasca do bairro alto para esclarecerem as dúvidas da idade e do futuro. conversaram entre pequenos tragos de bebidas curtas. não se importaram quando a idade. apenas a surpresa do aniversário. decidiram logo naquele momento que não haveriam de olhar ou falar um com o outro no dia do aniversário. 

apresentaram a vida um ao outro. ela já mãe de dois adolescentes. ele mau aluno, indeciso entre os estudos e as loucuras de um mundo em que seria possível viver da inércia e da poesia. não se chocaram. eram diferentes. ela conhecera alguns escritores em vida. ele comovia-se a descrever passagens:

"Então abriu passagem uma jovem enfermeira, que se debruçou sobre o meu tetravô, tomou suas mãos, soprou alguma coisa em seu ouvido e com isso o apaziguou. Depois passou de leve os dedos sobre as suas pálpebras, e cobriu com o lençol seu outrora belo rosto."

Chico Buarque

quando terminou a tarde, ele regressava para casa dos pais. ela voltava para os miúdos e para um marido de quem se esquecera o nome. guardavam sem despedida um encontro que se prolongaria sem idade.

foi assim que se conheceram. sem promessas. sabiam que se pertenciam. 

repetiam os gestos desses dia. mesmo no sofá e no cadeirão. havia dias que faziam amor como novos. havia dias que faziam amor como os velhos. umas vezes sossegados e sem beijos. outras, a decorarem as formas do corpo que se alteravam. o Antunes que envelhecia. a Penelope que rejuvenescia. juravam muitas vezes que se encontrariam a meio da idade. 

nunca aconteceu.

agora na sala, ele no sofá, ela no cadeirão. completamente desconhecidos para o tempo, sabiam que o fim da vida viria naturalmente fora da sala, fora da casa. enquanto a Penelope terminava mais um capítulo de Guerra e Paz, o Antunes escolhia o tecto para imaginar tudo ao contrário. a morte depois da vida. o recomeço de tudo. repetidamente. o eterno retorno.

a Penelope a pousar o livro no chão, entre os outros muitos. a apagar o cigarro que outrora pendurado. a beijar a testa velha do Antunes. a despedir-se

- até depois de amanhã.

o Antunes a perceber. a fechar os olhos devagar. no dia seguinte não se encontrariam os olhos, não falariam um com o outro. era aniversário. acordariam apenas no terminar do dia para voltarem a ser o que sempre jurariam ser: a oportunidade nunca desperdiçada.

passaram-se dias. o Antunes acordou em cada um deles com a promessa de que seria sempre algo melhor a acontecer. mas o cadeirão sempre vazio. a louça intocável. os retratos sem simetria, entortados pela displicência dos que se ausentam.

contava já cinquenta anos. cinco anos depois do Guerra e Paz. cinco anos depois do ultimo cigarro pendurado. cinco anos depois de tudo o que era pesadelo. o Antunes tinha cinquenta anos e era naquela idade que a certeza lhe prometera que se encontrariam na idade. teriam ambos cinquenta anos e não mais envelheceriam. 

foi com uma pistola que o Antunes secou. apontou a têmpora direita e só foi a tempo de ouvir a bala a rasgar a pele e a roçar a carne. o resto não se lembra. esqueceu-se porque ficou vivo. deitado numa cama de hospital, a chamar pela Penelope.

- Penelope. Penelope. Penelope.

no dia do seu aniversário, calou-se. cansou-se de chamar pela esperança e adormeceu novamente, com a ternura da juventude precoce. acordando alegremente no lugar do autocarro onde ouviu:

- não tens idade para entender os poemas do Jorge Luis Borges.

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